Introdução
No Direito Doméstico dos Estados, a relação entre a simbologia religiosa e o Estado se insere no âmbito questão da separação do Estado dos assuntos religiosos em razão do princípio constitucional de que o Estado deve ser laico, como é o caso da Constituição Federal Brasileira.
Na seara do Direito Internacional, a presença de símbolos religiosos foi discutida nos primeiros anos do milênio na Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso Lautsi e Outros contra o Estado Italiano, onde o tema foi debatido na perspectiva dos direitos humanos.
A Corte de Estrasburgo julgou por maioria expressiva de seus julgadores (15x 2), em 18 de Março de 2011 que a existência de crucifixos em salas de aulas públicas não fere os direitos humanos de pais e alunos.
Em 2005, à luz da Constituição brasileira, publiquei o seguinte artigo:
“Os Juízes Fugindo das Cruzes”
I.
O texto traz em epígrafe matéria veiculada recentemente pela imprensa. Trata-se de polêmica suscitada a respeito da constitucionalidade da existência de crucifixos (com a imagem de Jesus Cristo neles aposta ou não) em prédios públicos, especificamente, nas salas de audiência ou sessões de julgamento de Fóruns e Tribunais, recintos onde os magistrados exercem suas funções.
A alegação de inconstitucionalidade se funda, sinteticamente, no fato de que não pode haver relação do Estado (poder secular) com a Igreja (não importa qual), que é instituição privada e que, tradicionalmente, é atribuído um poder religioso.
O proibitivo constitucional teria espeque no artigo 19, Constituição, que reza:
Art. 19 – “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
II.
Não convêm, nessa ligeira abordagem jurídica do assunto, invocações históricas concernentes aos antigos vínculos entre o poder político (não-religioso) e o poder religioso. Sob este particular aspecto, mostra-se suficiente dizer que, nos primórdios, a origem do poder é una, promíscua e de cunho religioso. A evolução separatista não se deu sem guerras, tampouco se verificou linearmente, quer no tempo, quer no espaço, nem se encontra, hodiernamente, consumada, notadamente, no Oriente.
III.
Faz parte da mentalidade jurídica pátria, pela origem de seu direito no sistema romano-germânico e pela fortíssima influência positivista, notadamente, da escola exegética francesa, que tomou vulto quando da interpretação do Código Napoleônico, o pendor pela formação de soluções jurídicas estritamente legais, gerais, herméticas e uniformes.
Essa tradição jurídica, justificada no princípio da separação dos Poderes de Montesquieu, tende a distorções a curto prazo e, por conseqüência, leva a uma rápida senilidade normativa; o resultado é uma enxurrada de diplomas legais, uns substituindo os outros, já que a cristalização de seus dispositivos, que tratam os fatos como acontecimentos fotografados no passado, desatualizam-se em alta velocidade e, ao mesmo tempo, impedem que sejam as letras legais adaptadas às novas realidades, plasmadas com maior liberdade pela jurisprudência diante da maleabilidade de que se revestem os eventos humanos sociais.
Essas considerações devem ser feitas para justificar que a solução jurídica para a questão do emprego de crucifixos (ou quaisquer outros símbolos religiosos) em prédios do Judiciário (ou de quaisquer outros entes públicos) não pode ter, pela plasticidade do assunto em pauta (a manifestação da fé e da religião das pessoas), um caráter absoluto, quer na proibição, quer na permissão.A resposta ao “dilema das cruzes” teve se assentar em bases relativas.
IV.
No direito pátrio, pode-se considerar inconstitucional a existência de qualquer símbolo religioso em prédios públicos? A resposta a essa questão é complexa e comporta distinções, parafraseando o filósofo italiano NORBERTO BOBBIO.
O primeiro aspecto a considerar é que, no preâmbulo da Constituição Federal, o Poder Constituinte invoca a proteção de Deus. Igualmente, a Casa da Moeda imprime no papel moeda nacional a expressão Deus seja louvado. Estaria havendo antinomia entre o artigo 19, invocado para fundamentar a inconstitucionalidade dos crucifixos nos palácios da Justiça, e o próprio preâmbulo constitucional? Não existe contradição, visto que não se confunde deísmo com religião.
Deísmo é um sistema filosófico pelo qual se acredita na existência de um “ser dos seres, a causa das causas, o fim dos fins, o verdadeiro absoluto” (VACHEROT); religião é o conjunto de dogmas, princípios de fé e formalidades pelas quais se manifesta a ligação do homem com Deus.
A Constituição Federal criou um Estado, portanto, deísta, e não religioso, daí porque ela invoca Deus no seu preâmbulo, mas proíbe relações do Estado com religiões no seu artigo 19, inc. I.
Em outras palavras, o “Deus” para o Estado brasileiro, segundo a aparente vontade do Poder Constituinte, é uma entidade geral e supra-religiosa, é a aspiração ética de re-ligação do homem ao princípio criador e organizador do Universo no qual ele acredita, sem implicar dogmas e ritos que constituem as diversas instituições religiosas espraiadas pelo mundo: Cristianismo, Judaísmo, Islamismo etc.
Se para o Estado, enquanto pessoa jurídica, é obrigatório o deísmo destituído necessariamente de religião, para as pessoas naturais em geral não se aplica a proibição de se ter uma religião. Impede dizer que para a maior parte das pessoas é inconcebível a fé em Deus sem um rito ou uma formalidade pela qual o homem se aproxima Dele e, então, se reúne a Ele através de dogmas cuja crença se prende ao princípio da fé.
Por isso, a Constituição proíbe as discriminações (art. 3º, IV), estabelece a igualdade entre as pessoas (art. 5º) e, por fim, consagra o direito de “livre exercício de culto religioso”.
O “livre exercício de culto religioso” é reconhecido às pessoas, sejam elas particulares ou servidores públicos, embora o exercício desse direito encontre limites maiores no caso dos servidores públicos.
Não pode o Estado privar os servidores públicos da manifestação religiosa, por exemplo, nas repartições onde exercem suas funções, porque é a religião uma expressão humana ínsita aos próprios direitos da personalidade, vale dizer, manifestar individualmente a religião é um direito natural, um direito personalíssimo que não pode o Poder Público cortar cerce sem incorrer em fascismo.
Na esteira desse raciocínio, a conclusão é que o Estado ou o Poder Público, enquanto pessoa jurídica de direito público (interno e externo), pode professar “fé em Deus”, no sentido filosófico de crença na existência de um princípio perfeito responsável pelo Universo, sem alusão a qualquer rito, forma, dogma, liturgia, enfim, sem adotar uma determina religião.
Já as pessoas naturais, sejam elas servidores públicos (no sentido amplo, englobando, inclusive, os agentes políticos, tais como magistrados, senadores, deputados etc.), sejam elas particulares, não podem ser proibidas de manifestarem a sua religião, isto é, a sua forma de se “re-ligar” ao “princípio criador e organizador do Universo”.
Concretamente dizendo, um magistrado, por exemplo, se for Católico, pode ter na sua sala de audiências ou no seu gabinete um crucifixo pendurado na parede ou uma imagem de Nossa Senhora sobre sua mesa, assim como um comerciante pode ostentar os mesmos objetos em seu local de trabalho.
A diferença entre o servidor público e o particular não está no direito, e sim na sua extensão. Não pode um magistrado, por exemplo, ou qualquer outro servidor público, institucionalizar no prédio público uma dada religião, por exemplo, transformando a entrada do estabelecimento público em uma capela beneditina, porque, nessa absurda hipótese, estaria violando a liberdade das pessoas, que não têm a mesma religião, a aceitarem o seu rito ou dogma religioso.
Por isso, como se disse, a questão da constitucionalidade do emprego de objetos religiosos em prédios públicos comporta distinção: Se o emprego dos objetos extrapolar a esfera da individualidade do servidor público, é inconstitucional; se tais apetrechos de cunho religioso, todavia, cingirem-se à individualidade do servidor, como expressão de sua própria personalidade ou como uma manifestação pessoal e específica de sua pessoa, sem exageros ou fanatismos que interfiram na eficiente prestação do serviço público, não poderá haver proibição, sob pena de se lesar um direito natural da personalidade humana que resulta da crença em Deus, o que é adotado pela Constituição Federal.
V.
A eqüidade, que já era empregada pelos pretores na interpretação do rígido direito romano, deverá indicar, caso a caso, concretamente, as situações em que as manifestações religiosas dos servidores públicos se institucionalizam e, portanto, tornam-se proibidas, das hipóteses em que a expressão religiosa é, por sua descrição, tolerável, não-agressiva à liberdade de culto dos particulares que freqüentam os prédios públicos. VI. Evidentemente, não parece ser admissível, na ordem pública, a ostentação de qualquer culto ao demônio. Realmente, o particular pode expressar essa natureza de “religião”, em local privado (na forma do art. 5º, VI), mas já não pode fazê-lo o servidor público no prédio do Estado, visto que, constitucionalmente, foi adotada a expressão “Deus”, a qual, claramente, opõe-se, na ordem maniqueísta das idéias, ao “demônio”, ao “Mal”, a “Lúcifer” etc. VII.
Conclusão
Por conclusão:
1) O Estado brasileiro é deísta, o que impede, em repartições públicas, manifestações do tipo demoníaca, que não é vedada, na forma do artigo 5º, VI, da Constituição Federal, no âmbito particular.
2) Ao Estado brasileiro é proibida qualquer manifestação de caráter religioso, sob pena de violar o princípio republicano que profliga qualquer tipo de discriminação, o qual é subjacente à regra do art. 19, inc. I, do texto constitucional.
3) Os particulares podem expressar religiosidade livremente, na forma do artigo 5º, VI, da Constituição Federal.
4) Os servidores públicos (em geral) não são proibidos de manifestarem sua religião nas repartições públicas onde prestam seus serviços, contanto que a expressão de religiosidade se limite à sua individualidade e não cause prejuízo à eficiência do serviço público.
5) A proibição de o servidor público exteriorizar sua religiosidade em caráter individual no prédio público viola o direito natural à religião, que é corolário necessário do princípio da fé em Deus, segundo a tradição humana, princípio este adotado, expressamente, pela Constituição Federal.
Posição do Supremo Federal do Brasil
Meu posicionamento é relativamente diferente da unanimidade dos ministros da Corte Suprema do Brasil. No meu entendimento, a expressão da religiosidade em repartições públicas se permite nos limites da individualidade do servidor público. Um ministro pode manter um crucifixo no seu gabinete, que é seu local de trabalho público, mas individual dele. No plenário da corte, não.
E, na realidade, minha tendência seria a de não haver manifestação simbólica alguma de religião em prédios públicos, no mínimo, pela razão de que, por um lado, o Estado é laico e, por outro, na maior parte do tempo, os governos não têm uma ética que lhe faça merecer ostentar qualquer símbolo religioso, daí porque ser necessária uma ética mais prática, de modo que a lei se torne menos utópica (Edward Carr).
O Cristo na cruz representa um dogma do Catolicismo, enquanto o Cristo Ele mesmo é um símbolo mais amplo, representando o Cristianismo.
Um cristão se sentiria acolhido em um plenário da corte suprema; muito provavelmente, um muçulmano pararia para refletir. O inverso é verdadeiro.
No plenário do STF, não são poucas as decisões que contrariam aquele dogmatismo que representa o Cristo na cruz, o ápice de sua trajetória no mundo, segundo o que Ele mesmo pregava, de modo que poderia parecer demagógica a figura do Cristo rodeado por juízes, inclusive, porque foi pelas mãos de um deles, Pôncio Pilatos, que se cumpriu, nada obstante divinamente profético, o crime que foi crucificá-Lo, segundo o que reconheceu o próprio imperador romano Tibério, de acordo com o que nos informa os escritos apócrifos.
Julgamento do STF do Brasil e a Experiência em Outras Legislações
Ao menos por enquanto, o Brasil tem problemas relativamente simples com conflitos religiosos. A tendência é que tais conflitos se intensifiquem, entre outras condições, por causa da cultura globalizada das redes sociais, onde permeia ainda muita intolerância em diversos níveis. Ainda, ao contrário dos Estados membros da União Europeia, o Brasil não recebe, ao menos por enquanto, massiva imigração de culturas cuja religiosidade é dotada de certo radicalismo. Mas não é assim em outros quadrantes.
A Lei 21 de Quebec (Canadá)
A Lei 21 de Quebec, que proibe servidores públicos de irem às repartições de trabalho vestindo ou ostentando símbolos religiosos, é muito controversa e, por não poucos, considerada uma inusitada e surpreendente infração canadense aos direito humanos, pois o Canadá é, tradicionalmente, um país engajado na defesa dos direitos humanos.
Essa lei, que foi passada pela Assembleia Nacional de Quebec em 2019, foi cognominada de Act respecting the laicity of the State, em Português, a Lei do Respeito pela Laicidade do Estado.
Entre outros aspectos culturais, o fato é que o Canadá tem vários grandes grupos migratórios, alguns dos quais de vocação religiosa extremosa.
A liberdade de expressão religiosa em repartições públicas, afora contrastar com a laicidade do Estado, também pode trazer conflitos. Por isso, na Europa ou no Canadá, o meu entendimento seria o de banimento absoluto de simbologias religiosas em repartições públicas, sacrificando-se o direito humano individual da expressão religiosa ao direito humano coletivo maior de neutralidade, paz e segurança pública, que são deveres maiores do Estado para com sua nação.
Manifestação Religiosa. Individualidade, Estado e Justiça Internacional
A questão religiosa do indivíduo passa pelo crivo dos direitos humanos e, consequentemente, seguidos os trâmites regulares, deságua nas Cortes Internacionais cuja competência ratione materiae se dará, precisamente, pela categorização do conflito como direitos humanos. Nesse particular, é boa a observação de Frédéric Mégret1:1
“(…) Porém, nenhuma dúvida há de que a questão de como lidar com os símbolos religiosos na esfera pública – particularmenteas várias formas de véus islâmicos – tem se tornado um verdadeiro debate global. Do Quebec ao Uzberquistão, da Turquia aos Estados Unidos, ou da França à China, o debate tem sido frequentemente mediado por órgãos supranacionais, notavelmente, a Corte Europeia de Direitos Humanos e o Comitê de Direitos Humanos da ONU”.
Doutrina da Apreciação Marginal nas Cortes Regionais de Direitos Humanos
Todavia, há de se considerar que as Cortes Regionais de Direitos Humanos – Europa, África, Ásia, Américas ou Liga Árabe – devem ser orientar pelo princípio da não-intromissão aprofundada nas concepções culturais das nações de suas regiões, exatamente nesse princípio consistindo a doutrina da Apreciação Marginal2.
No caso Lautsi e outros contra a Itália, a Grande Câmara da Corte Europeia de Direitos Humanos cassou3 a decisão de 1ª Instância para reestabelecer a decisão doméstica definitiva da Corte Italiana, prevalecendo o seu entendimento de que os crucifixos em escolas públicas não feriam a laicidade do Estado italiano, tampouco tinham o potencial de lesar direitos humanos de seus alunos e pais, visto que se tratava de uma emanação cultural da própria nação italiana.
Julgamento do STF e a Justiça Internacional
No plano doméstico, a decisão do STF é definitiva. Todavia, o julgamento do STF é passível de re-análise na seara do Direito Internacional, porque a questão, embora posta em termos de constitucionalidade da simbologia religiosa em repartições públicas à luz da obrigatoriedade constitucional da laicidade do Estado brasileiro, derrama seus efeitos na esfera dos direitos humanos no seu sentido amplo, tangenciando a liberdade de religião e o respeito à religiosidade do cidadão. Em tese, assumindo o Estado uma religião específica em detrimento de outras, todas igualmente dignas, inclusive, de acordo com o próprio Cristo, que nunca discriminou nenhuma, nem se arvorou na criação de uma religião nova ou melhor, e sim fazia referência à Sua nova interpretação das Antigas Escrituras, estaria o Estado lesando o direito humano individual da pessoa.
Todavia, como já observado, a tendência é de que a Corte Inter-Americana4, seguindo a doutrina da apreciação marginal, não interfira na decisão do STF5.
- Mégret F. Ban on religious symbols in the public service: Quebec’s Bill 21 in a global pluralist perspective. Global Constitutionalism. 2022;11(2):217-248. doi:10.1017/S2045381721000265 ↩︎
- Kamran, Muhammad Arsal. (2023). Bonded Labour in Pakistan: Examining the State’s Fight against the Practice. RSIL Law Review, 7, 11-38. ↩︎
- Below, find the ECtHR´s Lautsi case judgment. ↩︎
- O Brasil, ao contrário do Canadá, é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos. Logo, esse país, ao contrário daquele, não pode ser processado pela corte regional inter-americana de direitos humanos, embora o Canadá possa ser processado pela corte global de direitos humanos das Nações Unidas ↩︎
- Uma leitura complementar sobre Direitos Humanos e os julgamentos da Corte Inter-Americana: IACHR Publishes Report on Inter-American Standards Concerning Freedom of Religion or Belief
Inter-American Court issues first religious freedom decision, breaking with the ECHR on questions of religious autonomy ↩︎