Sigilosidade de Prontuário do Paciente

“Que nem a morte os separe…”

Para todo o sempre sigiloso, amém!

Ninguém duvida da importância do sigilo do prontuário médico de uma pessoa, cujo acesso deve ser restringido ao mínimo possível, salvo situações especiais (tirante o consentimento do paciente), por exemplo, a defesa do médico (resguardado o sigilo) ou alguma outra situação concreta cujos contornos sejam tão expansivos, que o sigilo daquele documento fique diminuído à secundariedade.

As legislações mundiais ocidentais mais democraticamente empenhadas concordam com esse sigilo, mas há alguns limites, inclusive, éticos.

E se o paciente já faleceu?

Nesse post, entendo cabível uma análise mui respeitosa de um parecer do Conselho Federal de Medicina sobre sigilo de prontuário médico de pessoa falecida (imposto mesmo aos parentes do falecido). A crítica é feita à luz de um caso concreto, que não poderei identificar.

O parecer sob construtiva crítica é antigo, de 2010, mas está em pé e estaria valendo, não fosse uma liminar judicial.

Reproduzo, por ética, o Parecer nº 6/2010, em seus termos literais tais como expressos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM):

O prontuário médico de paciente falecido não deve ser liberado diretamente aos parentes. O parecer CFM nº 6/10 reafirma que o direito ao sigilo, garantido por lei ao paciente vivo, tem efeitos projetados para além da morte. A liberação do prontuário só deve ocorrer por decisão judicial ou requisição dos Conselhos de Medicina (Federal ou Regional). De acordo com o relator do parecer, conselheiro Renato Fonseca, o prontuário é um documento que pertence ao paciente. Por tanto, deve ser protegido por regras éticas e legais que impedem sua divulgação por qualquer outra pessoa, incluindo o médico.

“Muitas vezes os familiares são as pessoas que o paciente menos quer que tenham acesso ao prontuário.

O documento também possui dados pessoais e sobre a sexualidade”, disse Fonseca.

O Código Civil não prevê a figura do “representante legal do falecido”. “Os direitos da personalidade são intransmissíveis, não cabendo cogitar, portanto, a transmissão sucessória de um direito personalíssimo como a intimidade e a vida privada”, defende o relator. Vida privada – O sigilo médico é instituído em favor do paciente e encontra suporte na própria Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso X: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (…)”.

Por sua vez, o Código Penal estabelece penalidades para a violação do segredo profissional. De acordo com o seu art. 154, qualquer segredo obtido através de função, ofício ou profissão deve ser resguardado. No que diz respeito à medicina, o segredo médico é abordado pelo Código de Ética Médica e se baseia na relação de confiança entre o médico e o paciente. Segundo o conselheiro Carlos Vital, 1º vice-presidente do CFM, “trata-se nesse parecer dos direitos relacionados a personalidade humana, reconhecidos pelos diversos ordenamentos jurídicos, constituindo direitos inatos, por existirem antes e independentemente do direito positivista, como inerentes aos próprios homens, considerando em si e em suas manifestações”.

Sendo você o paciente morto, você assinaria embaixo dessas ponderações médicas?

E sendo você um parente de paciente morto? Essas palavras expressam o seu ponto-de-vista sobre a questão?

Como dito, aludido parecer estaria valendo, se não fosse a eficaz reação via ação civil pública do Ministério Público Federal de Goiás (MPF/GO), o qual obteve liminar ordenando que o CFM tomasse as providências para permitir o acesso dos parentes de paciente falecido ao seu prontuário, assim entendido o cônjuge (companheiro/a) e os parentes, seguindo-se a ordem de sucessão legal, cfe. Proc. nº 26798-86.2012.4.01.3500, 3ª VF da Sub. Goiás, o qual recebeu sentença confirmando a liminar antes concedida.

O processo está sendo “atacado” (palavras literais na Recomendação CFM 3/14), isto é, recorrido pelo CFM.

No Tribunal Federal, o “ataque” recebeu parecer desfavorável ao CFM pelo MPF de 2ª Instância (10/11/2016) e, após o demorado protocolo de digitalização, aguarda julgamento de 2ª Instância.

Então, embora o assunto seja antigo, pode-se ver que ainda está “vivo”, pois, embora em pé o julgamento de primeiro grau judicial, encontra-se em pé também a posição atacante do Conselho Federal de Medicina.

Interpretação Distorcida da Ordem Judicial

Mas o fato corrente é que há uma “interpretação” distorcida da ordem judicial, inobstante a clareza funcional sintática coordenativa adicional do “e” nela, de modo a impedir acesso de descendentes (filhos) ao prontuário dos ascendentes (pais), sob o argumento de que apenas o cônjuge ou companheiro (a) pode requerer aquele documento médico, passando os parentes a ter o direito apenas na falta dele!

Algumas outras instituições são mais criativas. Exigem que o requerimento de cópia de prontuário médico seja feito por um “inventariante”.

Não se está aqui a falar de teorias. São fatos concretos com os quais lidamos.

Descumprimento das Normas do CFM na criação do Prontuário Médico

Outra questão a ser observada. A maioria das instituições “guardiãs” dos prontuários médicos usam de um sistema misto, pelo qual parte do prontuário tem suporte eletrônico e parte em papel, o qual é digitalizado e feito o upload para o sistema.

Quando o prontuário é entregue por cópia física ao requerente (paciente, representante legal ou parente dele), a instituição entrega cópias de péssima qualidade, com documentos faltantes, prejudicando o estudo do documento médico para fins jurídicos.

Falamos aqui de um caso concreto reportado ao CFM.

As cópias foram apresentadas sem autenticação (rubrica do responsável pela emissão), nem eram numeradas em ordem crescente em sua margem direita, contrariando a necessária organização do arquivo, como exigido pela Resolução CFM nº 1.821/2007, modificada pela Res. CFM nº 2.218/2018.

Atos médicos não estavam assinados no prontuário, nem digitalmente, nem fisicamente. Quando assinados fisicamente, eles eram documentos eletrônicos, que foram baixados, assinados, digitalizados e feito o upload para o sistema, mas assinados por outro médico!

A ocorrência relatada vulnera elementar senso de responsabilidade. Então, frustra também expressa orientação ética, não só do código deontológico, mas de normas esparsas (Res. CFM nº 1.490/98), sendo de clareza solar que “é vedado ao médico assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual não participou”.

Há dezenas de resoluções normativas federais do CFM sobre prontuário, visto que esse documento constitui o ponto de encontro da prática médica com a sua prova, de modo que o prontuário médico é de inestimável relevância para o médico, para o paciente, para seus parentes e para o próprio Estado. Com grande seriedade o Código de Ética Médica (Res. CFM nº 2217/2018) determina que seja criado, organizado, mantido e guardado o prontuário médico, além de outras normas de regência, nomeadamente, a Res. CFM nº 1.638/2002.

O caso concreto aqui tratado não pode ser levado à conta de um paradigma generalizador. Todavia, sem perder o respeito pelo CFM, nem por todos os médicos, a existência de ao menos um prontuário médico nas condições aqui concretamente explicadas, justifica que nenhum prontuário médico de pessoa falecida seja sepultado no mesmo caixão que ela, quando cônjuge, companheiro (a), pais, filhos etc. querem saber como está documentado o serviço médico prestado ao ente extinto.

Por conclusão, a prevalecer o Parecer nº 6/2010 do Conselho Federal de Medicina (CFM), pode-se sepultar com o morto um prontuário cujas eventuais faltas e desordens seriam a maior prova de latente erro médico. A dúvida assombrará a família para sempre, enquanto a possível fonte da verdade fica debaixo do braço de eventuais responsáveis. Data vênia, a posição jurídica do parecer 6/2010 ofende os mais comezinhos princípios de Justiça.

É como dar o remédio que mata a doença (violação do sigilo), mas também mata o doente (direito à verdade).

Se a própria regulação do CFM afirma que o prontuário médico é um documento que implica responsabilidade civil, administrativa, penal e, ainda, ato de eventual defesa, não faz sentido aquele parecer.

 
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