Risco Aéreo – I

O Risco do Ar no Direito Aeronáutico

Risco Aéreo na Aviação Civil: História, Incidências e Responsabilidade

“De erro em erro, vai-se descobrindo toda a verdade.”

Sigmund Freud


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  • Introdução
  • O caso dos Comets
  • Boeing 737 MAX
  • O Risco e a Técnica
  • Conclusão

Introdução

Na primeira fase do transporte aéreo civil, no princípio do século XX, o passageiro que entrava em uma aeronave estava ciente de que mais do que ser simplesmente transportado pelo ar, ele embarcava em uma aventura que tinha seus riscos. Guardadas as devidas proporções, aquilo era como é hoje em dia a situação de quem se transporta para o fundo do mar para conhecer as fossas oceânicas, ou que deseja fazer um passeio nas camadas exteriores da atmosfera para ter uma visão espacial do mundo. Ou seja, a atividade de transporte em tais casos é de risco.

Assim, o risco do ar surgiu na primeira fase da aviação civil e, ao logo do tempo em que a tecnologia aperfeiçoou o transporte aeronáutico, sua influência foi sendo mitigada; contudo, ainda existe.

“Risco do Ar, ou risco aéreo, é um instituto de direito aeronáutico que, posicionando-se entre os usuários dos serviços de transporte aéreo e o empreendedor aeronáutico, visa a estabelecer um justo equilíbrio entre os danos decorrentes do transporte aéreo e uma espécie de previsibilidade de que tais danos poderiam mesmo acontecer, de modo que o ressarcimento atenda a critérios específicos e diferentes daqueles que são, normalmente, aplicados aos contratos de transporte em geral, notadamente, à luz da legislação de defesa do consumidor.”

Esse é o primeiro de uma série de posts sobre o assunto, que se destina à discussão teórica do tema.

O caso dos Comets

O primeiro avião de transporte comercial de propulsão a jato foi o Comet, fabricado pela BOAC.

Essa portentosa aeronave inglesa envolveu-se, de Outubro de 1952 a Abril de 1954, em 21 acidentes (ou incidentes) aeronáuticos, ou seja, uma média estatística desconcertantemente impressionante de um acidente/incidente a cada vinte dias.

Com efeito, os Comets causaram a perda de dezenas de vidas humanas, provocaram indizíveis danos materiais e destruíram a carreira de vários comandantes que, sobrevivendo ao infausto, ficaram estigmatizados para sempre.

O Comet e suas “modernas” janelas “quadradas”, a razão de seus problemas…

Muito tempo, dinheiro, pesquisa e inteligência foram empregados para que, finalmente, fosse desvelada a misteriosa causa dos acidentes: Um defeito de engenharia na estrutura de cabine de passageiros… Na verdade, o formato estrutural das janelas (quadradas) fatigava rápido e inesperadamente, formando trincas catastróficas de alta velocidade.

A década de 50 não pode ser considerada como “primórdio da aviação”, nem se pode dizer que, naquele tempo, não era boa a tecnologia aeronáutica embarcada nos Comets de triste memória, inobstante seja uma época de ciência aeronáutica incomparavelmente menor da que é ostentada pelos widebodies modernos da Boeing e da Airbus.

De qualquer maneira, não se deve julgar o passado pela ótica do presente.

Este exemplo protagonizado pelas aeronaves inglesas Comets ilustra, com muita propriedade, a teoria do risco aeronáutico e sua aplicação ao direito aeronáutico. 

Observe-se que as aeronaves de transporte aéreo comercial das décadas de 40 (os trimotores alemães Junkers JU-52 ou os bimotores DC-3) e de 30 (os ingleses De Havilland Dragon) eram máquinas de uma geração tecnológica bem atrás dos Comets que as sucederam, absorvendo toda a tecnologia do pós-Segunda Guerra Mundial. Porém, aqueles aparelhos não provocaram tantos acidentes, o que revela que a tecnologia, por vezes, imprevisivelmente, em decorrência de seus próprios avanços, pode produzir riscos novos em troca de alguns benefícios.

Boing 737 Max

Mesmo nos dias contemporâneos, exemplo a ser lembrado é o da aeronave Boeing 737 Max. Esse jato é descendente de uma família de aeronaves de inegável eficiência e confiabilidade a toda prova. Todavia, o embarque de novas tecnologias de “software”, cujo objetivo era tornar o avião mais seguro em suas manobras, acabou por ser a causa direta de fatais acidentes que não teriam acontecido se tais tecnologias não estivem a bordo.

De fato, em Março de 2019, autoridades reguladoras de aviação civil em torno do mundo deixaram no chão (“grounded”) todos os Boeing 737 MAX narrow-body, depois que dois acidentes, em poucos meses, envolveram aquele jato, matando 346 pessoas: O primeiro acidente se deu com um Lion Air Flight 610 (Outubro de 2018) e o segundo ocorreu em Março de 2019 com a Ethiopian Airlines Flight 302.

Lion Air Flight 610 (Outubro de 2018)
Ethiopian Airlines Flight 302 (Março de 2019)
O Risco e a Técnica

É certo, por isso, que permeia as fases técnicas de todas as gerações de aeronaves a sombra intrínseca e invisível do risco do ar, o qual adere qualquer voo e do qual não pode ser afastado de forma absoluta.

Com efeito, o risco é uma unidade genética do cromossomo da máquina, de qualquer uma, mas tem especial relevância naquela que é a que ostenta a mais incrível e complexa mecânica, a que sobrepuja as co-irmãs que deslocam o homem nas águas, pelas estradas ou nos trilhos, o avião. 

O risco é, assim, da fisiologia da máquina aeronáutica, um gene que a vem acompanhando nas várias gerações tecnológicas de aeronaves, desde as primeiras ascensões aerostáticas tripuladas do final do século XVIII e, certamente, não desapareceu nos altos e velozes voos alçados pelos modernos aparelhos aeródinos dos dias de hoje. Fazendo uso de metáfora, pode-se dizer que a tecnologia aeronáutica transformou o risco do ar de caractere hereditário dominante em recessivo, mas não o eliminou. 

Conclusão

Por conclusão, impende dizer que a teoria do risco do ar não pode ser afastada da responsabilidade aeronáutica em uma simples operação de apagamento, sob o escólio da alta tecnologia de que dispõe a indústria aeronáutica moderna; o risco aeronáutico representa um fenômeno da maior complexidade e profundidade, e não deve ser compreendido em uma linha de visada, mas através de uma análise ampla da responsabilidade aeronáutica em cada um de seus três quadrantes básicos concernentes ao homem (que opera a máquina), à máquina (em si mesma considerada) e ao meio ambiente (onde a máquina é operada).

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