Corte Internacional Penal: Financiamento e Julgamentos Ideológicos


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Sumário

“Existem ao menos duas formas pelas quais os Governos podem tentar influenciar as cortes internacionais: Controlando seu orçamento, e decidindo quem serão seus juízes”

Philippe Sands1

“Os Tribunais Internacionais e seus Juízes devem ser vistos como distribuidores imparciais de justiça, que entregam decisões baseadas na lei; ou são eles meramente uma outra manifestação do poder e da influência do Estado nas relações internacionais? Os Tribunais Internacionais e os Juízes obedecem às noções de independência familiares nos sistemas legais nacionais?”

Ruth Makenzie2
Introdução

Há alguns anos, uma sugestiva indagação em uma prova de avaliação do módulo (B) de O Papel e o Funcionamento das Cortes e Tribunais Internacionais do curso de Direito e Política das Cortes e Tribunais Internacionais da UNIVERSIDADE DE LONDRES, inquiria o seguinte: “Em qual extensão, se é o caso, os arranjos para o financiamento de cortes internacionais0 e regionais afetam a independência dessas entidades?”

Um percuciente estudo do renomado Professor Cesar Romano, O Preço da Justiça Internacional, fez uma análise holística do financiamento das principais cortes internacionais de natureza pública, isto é, com competência para julgar causas de interesse dos Estados  (tais como a Corte Internacional de Justiça, o Tribunal Internacional do Mar, o Sistema Adjudicatório da Organização Internacional do Comércio) e também cortes de jurisdição penal internacional, a Corte Internacional Penal (de natureza permanente) e alguns tribunais ou cortes penais transitórias criadas a partir de resoluções da ONU, como o Tribunal Criminal Internacional para a Antiga Iugoslávia, entre outros.

Embora o estudo do citado professor não objetivasse avaliar a estrutura de financiamento dos tribunais internacionais em vista da sua “independência jurisdicional”, mas em razão de sua “eficiência jurisdicional”, o professor aponta, naquela análise  de 2005, como é mantido “apertado” o orçamento da Corte Internacional de Justiça, em contradição ao volume e importância de seus serviços, como forma de “manter o tribunal sob controle”, ou quanto é minguado o orçamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em razão dos “poucos amigos” que aquele órgão judicial pode granjear em um continente onde se verifica uma política de retrocesso de direitos humanos em vários Estados.

Nesse post, discutimos, à luz dos seus julgamentos nas Guerras Estados Unidos-Afeganistão, Rússia-Ucrânia e Israel-Hamas, se a atual estrutura de financiamento do Tribunal Penal Internacional está comprometendo a lisura e a legitimidade de seus julgamentos.

Antes, porém, são abordados alguns temas cujos conceitos, por serem correlatos, devem ser vistos e cuja conhecimento ajudará na compreensão do porquê iremos concluir que a Corte Internacional Penal é seletivamente ideológica e atua contrariamente à paz mundial ancorada no Direito Internacional.

“A Corte Internacional Penal foi criada para africanos e países pobres”

Presidente Ruandense Paul Kagame

O Primeiro Tribunal Internacional Permanente

É sabido que desde a Primeira Conferência de Paz de 1899, os Estados têm se reunido muito seriamente em torno da imperativa necessidade de haver uma certa medida de controle, ou de limites, sobre as guerras que vinham, e ainda vêm, assolando o mundo, causando não só perdas humanas irreparáveis como também destruição material de alto custo para o planeta. E como explica o saudoso Professor David D. Caron, em seu memorável artigo “Guerra e Adjudicação Internacional: Reflexos sobre a Conferência de Paz de 1899”, a organização de entidades judiciais internacionais era a grande esperança de solução para a tão esperada paz mundial, ideal que, ainda que parcialmente, concluiu-se pela criação da primeira corte internacional global, a Corte Permanente de Arbitragem.

Ora, a partir de 1899, outras cortes internacionais organizaram no terreno do direito internacional público, e todas elas tiveram o objetivo ou de promover a paz, ou de estreitar relações comerciais com o objetivo da irmandade mundial, ou obviar os males das guerras.

O Consentimento como Essência da Jurisdição Internacional

O princípio basilar de jurisdicionalidade de uma corte internacional, do qual nasce a seiva da sua autoridade legal e moral é, iniludivelmente, o consentimento dos Estados. Se um Estado não é parte de uma organização internacional que abriga uma corte internacional, ou se o Estado não é aderente ao estatuto, tratado, convenção ou protocolo que cria  uma corte internacional, aquele Estado não pode ser coagido pelos demais Estados a aceitar um julgamento de qualquer corte internacional, senão em um único e excepcional caso legalmente previsto na Carta de São Francisco, que tem natureza semelhante a uma Constituição Federal do Mundo, através de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU.

Exceção ao Princípio do Consentimento

Não é necessário, porém, ser um jurista internacional – basta ler os noticiários internacionais – para saber que não é tarefa corriqueira uma decisão “de força” sair do Conselho de Segurança, em razão do equilibro de forças e da equivalente dissidência de interesses no eixo político Leste-Oeste e Europa-América do Norte (e seus aliados), os quais campeiam entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (França, Reino Unido, China, Rússia e Estados Unidos). Por exemplo, em 25 de Maio de 1993, o Conselho de Segurança da ONU adotou a Resolução nº 827 pela qual estabeleceu o mandato do Tribunal Criminal Internacional para julgar os responsáveis pelas sérias violações às leis humanitárias internacionais, a saber, violações à Convenção de Geneva de 1949, violações às regras e costumes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade.

Ora, a legitimidade daquele tribunal é a Resolução nº 827. Logo, como poderiam os acusados (Radovan Karadzic, Ratko Mladic e Slobodan, para citar os mais icônicos), alegar ilegalidade da corte? A ONU reúne, na prática, todos os países do mundo, e o órgão de segurança dela é o Conselho de Segurança. Portanto, enquanto não se cria “outra ONU”, a decisão daquele órgão é a palavra final do mundo, legalmente soberana, goste-se disso ou não! Tanto é que, sendo a Corte Internacional de Justiça o principal órgão judicial da ONU, suas decisões terão apenas “força moral”, enquanto o Conselho de Segurança não lhe emprestar sua força executiva.

Lembre-se: Os Estados Unidos já tripudiou uma decisão da Corte Internacional de Justiça. De fato, a Corte da ONU (1986) reconheceu que os Estados Unidos violaram o direito internacional pelo modo que apoiaram os Contras na rebelião deles contra os Sandinistas. No entanto, mais tarde, acabou que a própria Nicarágua legislou um “esquece isso” e a condenação foi para as calendas gregas, safando-se os Estados Unidos porque sendo membro do Conselho de Segurança, jamais poderia ser objeto de uma resolução executória, porque, evidentemente, votaria contra ela!  

Compulsoriedade (e as tensões que uma Justiça Internacional de legitimidade duvidosa causa)

A compulsoriedade da jurisdição de um tribunal internacional é legítima à medida que a “competência de sua competência” seja, realmente, extreme de dúvida. Havendo dúvidas, e se essas dúvidas envolvem a legitimidade passiva de potências com assento permanente no Conselho de Segurança, é melhor caminho se reconhecer um “privilégio de foro” e declinar-se do julgamento, a fazê-lo contrariando o Estado que “não aceita a jurisdição”. E isto porque é tenso o antagonismo no Conselho de Segurança, e aquela decisão, como se sabe, não será cumprida, o tribunal será desprestigiado, a utilidade do direito internacional colocado em dúvida e, o que é pior, a sentença pode servir de estilete à paz.

Exemplo dessa situação está no Tribunal Arbitral do Mar do Sul da China; com fundamento na Convenção Internacional da ONU sobre a Lei do Mar, o órgão arbitral do Capítulo XV foi invocado pelas Filipinas contra a China que, por seu turno, jamais aceitou a jurisdição daquele tribunal.

Em consequência, o julgamento arbitral desfavorável à China foi unilateral em proveito da aplicação das Filipinas.

A partir daquele julgamento (29 de Outubro de 2015), os Estados Unidos, que sequer são partes da Convenção do Mar, passou a fazer incursões provocativas à China naquele mar, tornando a situação na região bem pior do que era antes do julgamento e, de quebra, influindo na posição política da China nas questões da Rússia com a Ucrânia, a única mediadora possível para negociar a paz com Putin!

 “Fator Justiça” (o exemplo da Carta de Ley)

O grande dilema do Juiz, seja ele um simples Magistrado de um modesto fórum nos fundos interiorano do Brasil, seja ele um Juiz do portentoso Tribunal de Haia, na rica Europa Central, reside na autocontenção do poder, isto é, manter-se o órgão judicial, nas liças que apazigua, no princípio de que a Justiça é a dicção da Lei; o inverso, a Lei é a dicção da Justiça, afora falacioso, é o suicídio da própria inspiração jurídica e ética da Justiça.

Comezinha lição jurídica, sua prática é vital para a saúde das cortes internacionais.

Não se duvida que crimes contra a humanidade foram praticados durante a Segunda Guerra Mundial. Crimes dessa natureza, antes, eram resolvidos com outros crimes. Ou seja, os vencedores executavam os vencidos, e nisso só se via, parafraseando o grande literário Saramago, “o fator guerra”. Contudo, passa a haver um problema muito sério de direito internacional quando o “fator guerra” é substituído pelo “fator justiça”. Justiça é lei e lei preexiste ao fato, não o contrário: Não se faz uma lei para o que já aconteceu, seria tão ilógico como se trazer uma testemunha ausente ao fato que testemunhará!

O fator justiça é um desvio, um erro que se verifica quando “os fins justificam os meios”.

Tal subversão aconteceu ao fim da Segunda Guerra Mundial com a criação do Tribunal de Nuremberg.

Enquanto aguardava seu julgamento como um dos principais criminosos de guerra, Robert Ley escreveu uma longa carta pela qual repudiava “o direito dos vitoriosos aliados julgarem os líderes alemães por crimes de guerra”0. A denúncia contra Ley imputava a ele a execução de um “plano ou conspiração” para “cometer crimes contra a humanidade”. Naquela carta, poucos dias antes de se suicidar, Ley questionava qual era a legitimidade do Tribunal de Nuremberg.

Evidentemente, não se advoga por Ley ou pelo Partido Nazista. Todavia, eventual responsabilidade daquele político por crimes deveria ser requisitada, e supervisionada internacionalmente, aos próprios tribunais germânicos do pós-guerra, e não exercida por um tribunal internacional, data vênia, de exceção… Aqui, no estilo do pensamento iluminista de Voltaire, e válido dizer que “mais vale a clareza de uma execução fora da lei, do que a obscura execução dentro da lei”, porque aquela reforça a ideia de que uma lei é preciso, ao passo que essa põe em dúvida a necessidade dela.

Jurisdição Universal3

Depois dos bárbaros eventos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os Estados líderes Aliados passaram a cogitar sobre a criação de mecanismos internacionais pelos quais certos crimes de guerra, contra a humanidade e contra os direitos humanos pudessem ser punidos eficientemente através de órgãos judiciais. O problema é que a instituição de uma entidade internacional judicial penal para tal fim dependeria da adesão dos Estados, sem a qual não poderia ser combatida a impunidade acontecida naqueles mesmos Estados. De fato, os Estados mais envolvidos com atrocidades não se sujeitariam a aderir uma organização judicial que, sendo financiada com a ajuda deles, ainda seria utilizada contra eles mesmos para punir seus grandes malfeitores, geralmente, políticos de alto calibre dentro daqueles países, onde sua influência impediria o julgamento imparcial de seus crimes, dos quais eles, como sói acontecer, ficam facilmente impunes!

Em 1949, com a adoção das Convenções de Geneva0, foi estabelecido aos Estados signatários dela o “compromisso” de criar leis necessárias à efetiva punição judicial em suas cortes de pessoas que cometam, ou tenham determinado o cometimento, de quaisquer graves violações contidas naquelas Convenções, qualquer que fosse a nacionalidade do perpetrador daquelas violações. Outros instrumentos internacionais possuem norma de jurisdição universal semelhante, por exemplo, a Convenção de 1984 contra Tortura0.

Assim, a jurisdição universal, que tem natureza penal, surge de textos legais internacionais que obrigam os Estados signatários a processar criminalmente os delitos internacionais mais graves por seus sistemas judiciais domésticos, ainda quando cometidos por estrangeiros e em território de outro país.

Então, a jurisdição universal seria uma extraterritorialidade da lei penal de um país justificada pela natureza do crime internacional cometido, por exemplo, genocídio.

Princípio da Complementaridade

O princípio da complementaridade, que é expressamente previsto no Estatuto de Roma (que governa as investigações e os julgamentos da Corte Internacional Penal), estabelece as diretrizes para que uma investigação ou julgamento criminal possam ser iniciados pela corte. Basicamente, de acordo com o Art. 17, a investigação internacional penal se sujeita a condições de inadmissibilidade, entre as quais estão: o caso é investigado pelo Estado que tem jurisdição sobre ele, a menos que esse Estado não tenha vontade ou seja genuinamente incapaz de realizar a investigação do caso; o Estado investigou o caso e decidiu não processar a pessoa investigada, a menos que tal decisão resulta da falta de vontade ou da genuína incapacidade de o Estado processá-lo, a pessoa já foi processada e não pode haver bis in idem (como previsto no Art. 20, parágrafo 3º) e, finalmente, se o caso não é suficientemente grave para justificar a ação da corte sobre eles.

Guerra Estados Unidos-Afeganistão

Fatou Bensouda é uma Advogada da Gâmbia e ex-Procuradora da Corte Internacional Penal (15-06-2012 a 15-06-2021). Em palavras simples para o leitor brasileiro, a promotora de justiça penal internacional.

O nome de Fatou se tornou conhecido mundialmente por sua tentativa de Investigação de crimes internacionais cometidos por militares norte-americanos e agentes da CIA na guerra do Afeganistão. De fato, em 20/11/2017, a procuradora capitaneou uma batalha judicial na Corte Internacional Penal para obter autorização para investigar crimes que teriam sido cometidos por nacionais norte-americanos; realmente, uma “audácia” sem precedentes que mirava agentes das Forças Armadas e da CIA, por crimes internacionais cometidos não só no território Afegão, mas fora dele também.

Fatou entendeu que a investigação seria de competência da corte, mesmo os Estados Unidos não fazendo parte do Estatuto de Roma (17/7/1998), pelo fato de que o Afeganistão é aderente e, consequentemente, seus cidadãos e seu território atraem a competência daquela corte criminal internacional.

A II Câmara de Pré-Julgamento do Tribunal Penal Internacional rejeitou a pretensão investigativa de Fatou4 (12/04/2019), mas por razões de ordem práticas na aplicação do princípio da complementaridade, já que os delitos teriam acontecido há muito tempo (01/07/2002).

A procuradora recorreu e a Câmara de Apelação do Tribunal Penal reformou4 (em 05/03/2020) a decisão de primeira instância, ordenando a investigação, tudo isso ao tempo do Presidente Trump, cuja política externa marcou um dos piores tempos da relação norte-americana com os organismos internacionais, inclusive, a ONU.

Em reação àquela decisão da corte criminal internacional, agiu diretamente Mike Pompeo, então Secretário de Estado dos Estados Unidos, referindo-se à Corte Penal como “falida” e “corrupta”4.

Donald Trump escalou o discurso, chegando a ameaçar invadir Haia, no Sul da Holanda, sede da corte, e impôs uma série de medidas restritivas contra a procuradora Fatou.

Como veremos, aquelas medidas foram reconsideradas pelo atual Presidente Joe Biden4, dando início a uma fase mais amigável entre os Estados Unidos e a Corte Penal que, por seu turno, também demonstrou sua “boa vontade” judicial para com Joe Biden.

Embora tivesse parcial fundamento no seu próprio estatuto, a investigação ordenada, sob o prisma do direito internacional em geral, é ilegal porque avançava sua jurisdição sobre nacionais de um país que não aceita a sua jurisdição; portanto, vulnerava a soberania norte-americana. Então, de certa forma, agressão política de Trump à corte não pode ser considerada indevida, mas uma retorsão à ilegalidade a que seus agentes públicos estavam sendo submetidos.

Porém, como dito, tempos novos com Biden! Atualmente, aquela investigação pela qual tanto se esforçou Fatou Bensouda está sepultada viva pelo atual procurador que a substituiu, o britânico Karim A. A. Khan5.

Em um estranho e contraditório pronunciamento público, em 27 de Setembro de 2021, Khan decidiu6 que deveria ser aplicado o princípio da complementaridade e, por conseguinte, deixar para que o novo Governo do Afeganistão investigasse os crimes cometidos em seu território, o que implicava dizer, em outras palavras, que os crime fora do território afegão não seriam mais investigados por ninguém, o que livrava os nacionais dos norte-americanos da liça judicial.

Início de Investigação Duvidosa que Termina de modo Suspeito

Em que pesem as gravidades dos crimes acontecidos no Afeganistão, ou em razão da guerra com aquele país, não podem cidadãos ou agentes públicos de um país serem investigados e processados por uma Corte Internacional, a menos que tal Corte tenha o consentimento desse país. No caso, os Estados Unidos não só não é membro do Estatuto de Roma7, como também é um oponente de primeira hora da criação da Corte. Então, é a aplicação simples do princípio do consentimento.

A indevida extensão jurisdicional do estatuto romano para além dos Estados que lhe são afiliados, obviamente, gera as drásticas reações impostas pelo então Presidente Trump. E a consequência é que a corte penal internacional, invés de contribuir para apaziguar o mundo, produziu uma tensão entre os Estados Unidos e a Comunidade Europeia, devido às ameaças feitas de invasão ao Reino das Terras Baixas.

Nada obstante, o recuo do Procurador britânico se dá, precisamente, pelo fato de que o Reino Unido e os Estados da Comunidade Europeia foram sensíveis à “causa americana” e, ao cabo, o que pesou no recuo da Corte Internacional Penal não foi, exatamente, a interpretação do princípio da complementaridade, e sim o comando político-financeiro do tribunal que está, claramente, nas mãos da Europa e que, mui certamente, influiu na nova visão dos fatos pelo procurador britânico.

O arranjo financeiro da Corte Internacional Penal

Basicamente, o sistema de custeio da CIP se dá pela contribuição de seus 124 membros.

Não vamos nos ater a outras contribuições esporádicas (voluntárias, fundos fiduciários geral ou fundos fiduciários para vítimas).

Assim, se os países da comunidade europeia (27 membros) retirassem suas contribuições financeiras da Corte Internacional Penal, inegavelmente, o resultado seria o fechamento, na prática, das portas do tribunal com a compra das passagens aéreas de todos os seus membros e funcionários para suas respectivas casas.

Considerando-se o levantamento de 31 de Dezembro de 2022, entre os países membros da Corte Internacional Penal, os maiores “devedores”, ao lado do Brasil8 (€ 22.089.327) e outros países da América Central e do Sul, são as nações do continente africano. Aliás, o próprio Afeganistão é devedor (€ 31.006).

Por outro lado, nenhum dos membros da Comunidade Europeia é devedor da Corte.

No seu total, a Comunidade Europeia contribuiu, em 2022, com € 61.689.467  para o custeio da CIP.

A totalidade da arrecadação da Corte (apenas as contribuições obrigatórias) foi, em 2022, igual a € 65.422.009 feitas pelos demais 96 Estados-membros.

Logo, 48,531% do financiamento da CIP está nas mãos de apenas 27 países de um mesmo bloco econômico.

Se considerarmos Islândia, Liechtenstein e Noruega (da Área Econômica Europeia) mais a Suíça (Mercado Único Europeu), chegamos à conclusão que os trinta e um (31) países amigos da Europa continental correspondem a 53,784%9 do que arrecadou a CIP em 2022.

Sem exageros, os números mostram que a Europa é a financiadora da CIP. Como não ser levado a imaginar que a Europa também é influenciadora da CIP?

Difícil crer que a guinada investigativa dada pelo procurador britânico, Karim A. A. Khan, em Setembro de 2021, não foi “ideológica” e resultante de um acerto entre parceiros ocidentais (Estados Unidos e Comunidade Europeia), pois, afinal, a quem interessa investigar os Estados Unidos por mortos no Afeganistão ou em razão do Afeganistão?

Em 2023, os Estados Unidos transformam em Lei a Possibilidade de Financiamento da Corte Internacional Penal

Coincidência ou não, o mesmo Presidente Biden tem se esforçado na alteração da política legislativa americana que proíbe qualquer financiamento do país à CIP, justamente, por ser os Estados Unidos um inclemente opositor à sua existência.

Ao que parece, Fatou acabou servindo por mostrar que fará melhor os Estados, mesmo sem aderir à CIP, participar de seu financiamento10. Esse financiamento está ligado às investigações relacionadas à guerra Ucrânia-Rússia e, portanto, favorece a política da Comunidade Europeia contra a Rússia naquele conflito.

Reminiscências da Investigação de Fatou

Nos dias de hoje, ainda reverbera no cenário internacional a investigação comandada por Fatou. Recentemente, veio a público que Yossi Cohen, diretor do Mossad (Agência de Inteligência Nacional de Israel), por conta daquelas investigações, teria ameaçado a ex-procuradora Fatou.

A notícia reacendeu o furor de parlamentares holandeses que exigem providências contra Israel, já que as ameaças constituem crime praticado por um agente público estrangeiro no território neerlandês.

Guardadas as devidas proporções, o ato de Israel, se provado, assemelha-se ao ataque dos agentes secretos franceses contra a embarcação do Greenpeace no porto de Auckland, na Nova Zelândia, em 10/7/1985. Porém, o que existe de pior no evento israelense do que no francês é que esse gerou um conflito entre dois Estados, o que é comum, enquanto aquele resulta em razão direta das atitudes excessivas de uma corte internacional, de modo que o conflito coloca no debate a utilidade da própria Justiça Internacional para a paz mundial. E isso não é bom.

Expedição de mandado de prisão contra Putin

A agressão cometida pela Rússia contra a Ucrânia é ilegal do ponto de vista do Direito Internacional. Contudo, sob uma análise imparcial, a agressão não se deu em um vácuo, mas foi consequência direta da provocativa aproximação da OTAN da fronteira russa.

Não se põe em dúvida o direito de um Estado, no caso, a Ucrânia, de se associar a uma organização de segurança internacional, como é a Organização do Tratado do Atlântico Norte. Contudo, em vista da destruição humana e material que tem sido causada pela guerra, o exercício daquele direito vale a pena? Existe uma ligação cultural entre a Rússia e a Ucrânia, ainda que, hoje, a aliança entre os países esteja totalmente destruída. Ucrânia não é, então, um vizinho territorial como a Finlândia ou a Noruega ao sudoeste.

Como analisamos em “Mandado de Prisão Internacional”, há aspectos na prontidão da investigação e da decisão de ordenar a prisão de Putin que desafiam a imparcialidade da Corte Internacional Penal no caso. O ataque russo à Ucrânia é considerado um ataque à própria Europa que, indiretamente, está envolvida no conflito. Quando se verifica que, sendo fortemente financiada pela União Europeia, a Corte Penal Internacional intervém judicialmente na guerra para ordenar a prisão de um dos Chefes de Estado envolvidos, a impressão é de que a corte não agiu com isenção, porque não tem sido nem tão rápida, nem tão drástica em face de outras guerras internacionais ou violentos conflitos internos surgidos ao longo de seus anos de atuação.

Pedido de Prisão contra o Primeiro-Ministro Netanyahu

O procurador da Corte Internacional Penal anunciou que pediu a expedição de mandados de prisão contra o Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e o seu Ministro da Defesa, Yoav Gallant, bem como a prisão de líderes do Hamas, Yahya Sinwar, Mohammed Deif e Ismail Hanuyeh. No seu pronunciamento, no dia 20 de Maio de 2024, Karim Khan deu suas explicações jurídicas.

Nada obstante, suas razões jurídicas impressionam mais pelo pano de fundo político em que a Corte Penal Internacional, mais uma vez, age como se fosse uma corte doméstica de um Estado soberano no exercício de uma jurisdição universal.

Como se sabe, Israel não é um Estado membro do Estatuto de Roma e, consequentemente, todas as razões técnicas que não autorizariam uma investigação contra os agentes públicos norte-americanos servem para desautorizar uma investigação contra o Chefe da nação israelense.

Reconhecimento Oficial do Estado da Palestina

Um outro ponto nevrálgico, de ordem muito mais política do que jurídica protagonizada pela Corte Internacional Criminal, e que ela, como organização internacional que é, reconhece a Palestina como um Estado e, assim, o Estado da Palestina é membro de seu Estatuto. Óbvio que abrigar o Estado da Palestina, ainda nos dias de hoje, representa tomar um “partido” entre uma disputa internacional antiga e irreconciliável entre árabes e israelenses.

Desde que a própria ONU não tem sido capaz de contornar a polarização política em torno do reconhecimento oficial do Estado da Palestina, esse passo à frente dado pela CIP a coloca, sem dúvida, em uma evidência política, o que é péssimo para uma entidade que, por ser judicial, não deveria estar envolvida em polêmicas daquela natureza.

Influência nas Eleições Norte-Americanas de 2024

Às vésperas das eleições nos Estados Unidos, o pedido de prisão do Sr. Karim adiciona combustível na política estadunidense, já que o Congresso e o Presidente não concordam com a natureza da oposição que devem fazer àquela decisão do procurador contra um antigo e importante aliado. Enquanto o Congresso parece se orientar no sentido de que uma lei impondo restrições a Karim e a todos quantos apoiarem seu pedido de prisão é a melhor alternativa, semelhante àquelas adotadas por Trump em 2021! Parece induvidoso que a decisão de Karim reforça a campanha de Trump em detrimento de Biden, embora não pareça que tenha sido essa a intenção. Porém, é um fato a sua ocorrência.

Reconhecimento de Jurisdição Territorial cuja Soberania está em Conflito

O julgamento do pedido de prisão está em mãos da I Câmara de Pré-Julgamento. Nela, Karim já obteve uma importante vitória em 2021, quando a Câmara, ressalvando que sua decisão não tinha efeito de delimitação territorial, reconheceu que sua jurisdição se estendia sobre os territórios ocupados por Israel desde 1967, nomeadamente, Faixa de Gaza, Cisjordânia (“West Bank”) e Jerusalém Oriental.

Ora, claramente, a decisão não influi no direito territorial sob disputa entre Israel e a Palestina; todavia, não deixa de ser mais uma polêmica em que a CIP se envolve à mercê do exercício de sua jurisdição penal.

Conclusão

Certamente, o objetivo da discussão não é subsidiar que a Corte Internacional Penal é “corrupta” (Mike Pompeo) ou que seus Juízes não são independentes, mas apontar que o atual formato do arranjo de seu financiamento leva, potencialmente, a distorções.

Quando é evidente que o mundo permeado por forças políticas aglutinadas ideologicamente em lados opostos, a atuação da Corte a meio de conflitos em andamento de forma seletiva, como acontece com a Guerra na Ucrânia e na Faixa de Gaza, traz a inegável impressão de comprometimento de sua atuação judicial com ideologias que, como se viu, refletem-se em seu orçamento.

A Corte Internacional Penal não julga Estados, mas indivíduos, sem dúvida. Porém, o indivíduo que é Chefe de Estado tem sua identidade física pessoal encarnada na posição política de Chefe de Estado, de modo que uma investida à pessoa daquele indivíduo se transforma em um ataque à nação cuja soberania ele encarna. Mesmo que se trate de um governante ditador, ou ainda que seja de fato um criminoso, sentá-lo num banco dos réus de uma organização internacional apenas o fortalecerá, pois, muito provavelmente, a nação se unirá, senão em torno dele, no mínimo, em volta da confiabilidade de suas instituições que, certamente, parecerão desrespeitadas.

Admitir-se que a Corte Internacional Penal aja com jurisdição universal, tornando-se competente para julgar indivíduos nacionais de países que não são aderentes ao Estatuto de Roma, fatalmente, contribuirá com a sua própria derrocada.

A jurisdição universal tem sido objeto de discussão pelo Sexto Comitê da Assembleia da ONU há algum tempo, e ainda não existe um consenso a seu respeito.

As polêmicas em que se envolve a CIP são incompatíveis com a imparcialidade que se espera de um órgão adjudicador. Na verdade, uma coleção de polêmicas que parece desaguar sempre a favor do lado a que está de acordo a Europa, como vimos, a sua financiadora-mor.

Se o modelo institucional do Conselho de Segurança, autoridade jurídica internacional máxima para tomar atitudes de contenção de ameaças à paz e à segurança mundial, não atende às necessidades galopantes nos dias de hoje, a alternativa é a sua reformatação pela própria ONU por seu órgão deliberativo máximo, a Assembleia Geral. Não cabe à CIP roubar a cena internacional e se arvorar na qualidade de “carro-chefe” da paz mundial.

Enfim, o professor Philipe Sands, em uma palestra proferida em 2003, pontuou, a respeito da crescente importância dos organismos internacionais judiciais na relação Estado-Estado, que

“As cortes e o judiciário têm emergido como importantes atores internacionais, com potencial para impor significantes restrições às liberdades dos Estados. A existência desses organismos sinaliza o desejo de fortalecer o estado de direito nas relações internacionais. A medida em que aquele desejo se alcançará depende, em parte, do processo pelo qual os juízes são escolhidos”.

Em acréscimo às palavras do professor, poderia se dizer que, em outra parte, o sucesso daquele desejo dependerá também de como são as cortes internacionais financiadas.


  1. Global Governance and the International Judiciary: Choosing our Judges. Sands, P. 56 Current Legal Problems (2003), 481-504 ↩︎
  2. Mackenzie, Ruth, & Sands, Philippe. (2003). International courts and tribunals and the independence of the international judge. Harvard International Law Journal, 44(1), 271-286. ↩︎
  3. Nesse post, o conceito de jurisdição internacional é discutido. ↩︎
  4. https://www.cnn.com/2019/04/12/politics/icc-rejects-afghanistan-investigation ↩︎
  5. https://www.lawfaremedia.org/article/icc-appeals-chamber-authorizes-investigation-crimes-afghanistan ↩︎
  6. https://www.npr.org/2020/09/02/908896108/trump-administration-sanctions-icc-prosecutor-investigating-alleged-u-s-war-crim ↩︎
  7. https://www.bbc.com/news/world-us-canada-56620915 ↩︎
  8. https://theintercept.com/2021/10/05/afghanistan-icc-war-crimes/ ↩︎
  9. https://www.icc-cpi.int/news/statement-prosecutor-international-criminal-court-karim-khan-qc-following-application ↩︎
  10. Estatuto de Roma. ↩︎
  11. A contribuição (assessment) anual do Brasil para a Corte Internacional Penal é de 6.250.606. Nenhum dos 27 Estados membros da União Europeia estão devedores de suas contribuições para a Corte Internacional Penal. O país da Europa que mais contribui é a Alemanha, seguida pela França. O maior contribuinte do mundo é o Japão, com 24.818.777. ↩︎
  12. Ficou de fora daquela conta o Reino Unido, outro contribuinte pesado do Tribunal Internacional Penal, 12.678.838. ↩︎
  13. Em 30 de Dezembro de 2023, Presidente Biden assinou a Consolidated  Appropriations Act, a qual  permite que os Estados Unidos tenha engajamento financeiro com a Corte Internacional Penal (Seção 7073 – Essa seção estabelece uma exceção à proibição de cooperação internacional com a Corte Internacional Criminal para certas investigações e processos contra estrangeiros por crimes relacionados à situação na Ucrânia). Leia também: https://www.publicinternationallawandpolicygroup.org/expert-roundtable-the-us-government-and-the-icc-trust-fund-for-victims. ↩︎
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