Justiça Federal do Brasil vs. Israel

Uma Questão de Não-Jurisdição que Ofendeu a Diplomacia

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Sumário:

  • Introdução
  • Entropia e Alopoiese
  • Ausência de Jurisdição da Justiça Federal Brasileira
  • Polícia Federal e Advocacia-Geral da União
  • Inexistência de Relação Direta entre o Estatuto de Roma e a Jurisdição Universal
  • Estatuto de Roma. Cooperação Internacional. Jurisdição Universal. Extraterritorialidade Penal
  • O Brasil  entre os Países Inadimplentes do Estatuto de Roma
  • Retração da Justiça Universal na Legislação dos Estados Europeu
  • Conclusão

Daria o Governo brasileiro um bom passo ausentando-se do Estatuto de Roma e de seu Tribunal Internacional Penal, órgão de alto interesse da política europeia, que interfere na política externa e na diplomacia dos demais Estados. Ademais, a nação economizaria um bom dinheiro. Em 2022, o Brasil pagou ao Tribunal Internacional Penal R$ 139.535.407,00. Em 2023, mais R$ 43.522.855,29, e ficou devendo R$ 438.788,74. A troco de quê?


Introdução

Existe um ditado popular brasileiro cuja sabedoria o tempo tem testado:

Casa onde falta pão, todos gritam sem razão.

O adágio popular é a afirmação empírica de um princípio de Termodinâmica, o da entropia, pelo qual se mede o “grau de desordem de um sistema”. Um outro princípio das ciências naturais: O da autopoiese, o qual nos fala de como os “sistemas” se comunicam entre si. No significado oposto, por alopoiese se designa a ausência de comunicação de subsistemas que deveriam ser coerentes entre si.

Uma matéria interessante sobre a autopoiese pode ser lida em Super Interessante. Para entender porque a autopoiese se aplica ao Direito e à Sociedade, naquele artigo, basta substituir o “corpo humano” e “fábrica” pelo Estado, com todos os seus órgãos de administração direta e indireta no Executivo, o Legislativo e o Judiciário, nas três esferas federativas, União, Estados e Municípios.

Naquele artigo, você deve considerar os “pedreiros” (que recebem os “tijolos”) como os juízes, sendo que os “tijolos” se interpretam como sendo as “leis”. 

Entropia e Alopoiese

Agora, ao ter em mente que, no Brasil, em um “plantão judicial de feriado” de fim de ano, toma-se uma “decisão de investigação urgente” de um soldado israelense (em férias na Bahia) por supostos crimes de interesse da humanidade, praticados na distante Faixa de Gaza, a pedido de uma fundação antissemita, e que, agora, “a Polícia Federal pede à Justiça Federal reconsideração da ordem de investigação”, o leitor pode concluir o porquê desse assunto revelar uma entropia (um erro jurídico vai ficando cada vez mais problemático juridicamente) e uma alopoiese do sistema jurídico ou, nas palavras de Paola Cantarini [1], uma “crise autoimunitária” ou “crise de desdiferenciação”:

“(…) Ocorre a crise autoimunitária como corrupção sistêmica quando a ordem jurídica não consegue mais decidir os conflitos com base no código binário direito não-direito (licito-ilícito), passando a utilizar outros códigos, de outros subsistemas, como ter não-ter, ou poder não-poder, ocorrendo a alopoiese do direito”

Se, por um lado, parece inapropriado decidir-se em plantão judiciário uma investigação urgente sobre um tema extremamente sensível para o planeta Terra no momento, uma guerra que acontece no outro lado do mundo, que não envolve o Brasil ou um brasileiro, mas é conectada às questões superiores da diplomacia do Brasil, por outro lado, também não é função de autoridade policial “pedir reconsideração de investigação que lhe foi determinada”.

Ausência de Jurisdição da Justiça Federal Brasileira

Como já falamos em outro post, a questão da ilegalidade da investigação repousa não na inexistência de direito substantivo penal interno, o qual existe (para o crime de genocídio apenas) e está na lei que define o tipo penal de genocídio, a Lei nº 2.889/56; tampouco se prende à ausência de provas (como sustentou o Ministério Público Federal), mas se ampara em preceito muito maior e preliminar: A ausência total de jurisdição da Justiça doméstica brasileira para exercer jurisdição universal, pela qual poderia avançar uma investigação sobre um fato acontecido no estrangeiro e praticado por um não-nacional.

Embora o Brasil tenha prestígio na Justiça Internacional, a Justiça brasileira em si mesma é inexperiente em direito internacional, matéria que não tem relevância nos cursos de direito por causa, justamente, da falta de maior engajamento político-jurídico do Brasil nas questões de direito internacional público. É o contrário do que se verifica nos Estados Unidos, Canadá, Europa, China e Rússia, por exemplo, países cujo protagonismo no cenário internacional serve de chamariz para o estudo e a produção científica do direito internacional público.

Polícia Federal e Advocacia-Geral da União

A ilegalidade patente do exercício de jurisdição universal pela Justiça Federal de Brasília, por outro lado, não cabe ser objeto de representação da Polícia Federal, mas o assunto deveria ter merecido consideração da União através de seu organismo jurídico apropriado, a Advocacia-Geral da União; data vênia, a propósito, no pedido de investigação do soldado israelense Yuval Vagdani, formulado pela Fundação Hind Rajab, em razão do manifesto efeito na diplomacia do país e na política externa do governo federal, a União deveria ter sido ouvida também. Mas não foi ouvida, nem se fez ouvir até agora.

Inexistência de Relação Direta entre o Estatuto de Roma e a Jurisdição Universal

O Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Internacional Penal, diz respeito à cooperação do Brasil com as solicitações daquela Corte. O Brasil tem, então, apenas a obrigação de cooperar com a Corte, a partir da internalização do Estatuto pelo Decreto nº 4.388/2002. Mas essa cooperação nada tem a ver com jurisdição universal, que é uma forma extrema de extraterritorialidade jurisdicional do Estado, a qual tem se mostrado como um instrumento de conflito e de interferência de um Estado na esfera de outro.

A propósito, o Brasil é inadimplente da obrigação de implementação de sua legislação doméstica às várias exigências emergentes da sua aderência àquela convenção internacional, o que se justifica pela acerta posição política internacional mais conservadora, menos invasiva, adotada não só pelo Brasil como também pela grande maioria dos Estados signatários do Estatuto de Roma, em razão de suas cautelas nas relações internacionais. [2]

Mesmo no plano da cooperação, isoladamente, o Decreto nº 4.388/2002 não permite uma cooperação plena por falta de regulamentação legal dele.

O que aqui expomos é reconhecido na comunidade de direito internacional [2.1]:

Apesar desses esforços, mais de 20 anos após a entrada em vigor do Estatuto de Roma, apenas 55 dos 124 Estados Partes do Estatuto de Roma alteraram suas leis criminais para que as autoridades nacionais possam investigar e processar crimes do Estatuto de Roma e promulgaram legislação que prevê a cooperação com o TPI. Outros 17 Estados-Partes promulgaram legislação que aborda apenas parcialmente suas obrigações no Estatuto de Roma. 52 Estados-Partes não têm legislação de implementação. Nos últimos anos, o ritmo de implementação diminuiu drasticamente – apenas nove Estados-Partes promulgaram legislação desde 2015.

Logo, nada existe no Decreto nº 4.388/200 que permita à Justiça brasileira o exercício da jurisdição universal, nem há qualquer relação entre a completa implementação do Estatuto de Roma (que não é o caso do Brasil) com a Jurisdição Universal.

Estatuto de Roma. Cooperação Internacional. Jurisdição Universal. Extraterritorialidade Penal

O Estatuto de Roma, a cooperação internacional penal e a jurisdição universal são conceitos diferentes que coabitam e compartilham de uma mesma inspiração.

O Estatuto de Roma é sobre a criação do Tribunal Internacional Penal, da obrigação dos Estados signatários de seu Estatuto em cooperarem com o TIP, e a punição pelas Justiças domésticas dos Estados aderentes aos crimes previstos naquela convenção, mas no plano nacional apenas, mediante expressa implementação legal.

A cooperação internacional penal decorre de acordos internacionais específicos de direito internacional privado. O Estatuto de Roma, que é de direito internacional público, prevê cooperação penal, mas não é entre os Estados aderentes, e sim dos Estados aderentes para com as solicitações do Tribunal Penal Internacional.

A jurisdição universal é um conceito de justiça internacional, o qual está em desenvolvimento e que, para ser exercido, depende de expressa e específica legislação doméstica dos Estados.

Enfim, há o conceito paralelo de extraterritorialidade penal, o qual é previsto no artigo 7º do Código Penal Brasileiro, e onde se estabelecemm as situações excepcionais em que a lei penal brasileira se aplica a fatos e pessoas quanto a crimes praticados foram das suas fronteiras jurisdicionais.

O Brasil  entre os Países Inadimplentes do Estatuto de Roma

Os países que adapataram sua legislação, de modo a poderem punir os crimes previstos no Estatuto de Roma, o que não significa que tais países possam fazê-lo por jurisdição universal, são: Burquina Faso; Canadá, República Centro-Africana; Comores; Costa Rica; Croácia; República Democrática do Congo; Dinamarca; Equador; Estônia; Finlândia; França; Geórgia; Alemanha; Grécia; Guiné; Islândia; Irlanda; Itália; Quênia; Letônia; Lituânia; Luxemburgo; Macedônia do Norte; Malta; Maurícia; Montenegro; Países Baixos; Nova Zelândia; Noruega; Paraguai; Polônia; República da Coreia; Romênia; Samoa; Senegal; Sérvia e Montenegro; Eslováquia; Eslovênia; África do Sul; Espanha; Suécia; Suíça; Trinidad e Tobago; Uganda; Reino Unido; e Uruguai.

O Brasil faz parte do grupo indicado como aqueles que não implementaram o Estatuto de Roma: Andorra; Antígua e Barbuda; Armênia; Barbados; Belize; Bolívia; Brasil; Chade; Congo; Ilhas Cook; Chipre; Djibuti; Domínica; El Salvador; Fiji; Gabão; Gâmbia; Gana; Granada; Guatemala; Guiana; Honduras; Jordânia; Kiribati; Lesoto; Libéria; Madagáscar; Malawi; Maldivas; Ilhas Marshall; México; Moldávia; Mongólia; Namíbia; Nauru; Níger; Nigéria; Palestina; San Marino; Seicheles; Serra Leoa; São Cristóvão e Nevis; Santa Lúcia; São Vicente e Granadinas; Suriname; Tajiquistão; Tanzânia; Timor Leste; Tunísia; Vanuatu; Venezuela; e Zâmbia.

Retração da Justiça Universal na Legislação dos Estados Europeus

Na Europa Ocidental, onde se encontram os entusiastas do Estatuto de Roma, no início da década de 90, houve uma euforia legislativa pela qual alguns países editaram leis para autorizar sua Justiça doméstica a exercer a jurisdição universal. É o caso da Bélgica, em 1993.

Nesse caso, nota-se que a jurisdição universal é o resultado de uma inspiração trazida pelo Estatuto de Roma, não no Estatuto de Roma fundada. Porém, é importante lembrar que os Estados Unidos, China, India, Rússia, entre outros, são grandes nações e com enormes razões contra o Tribunal Internacional Penal. Eles não aderiram ao seu Estatuto, e não aceitam também a doutrina da jurisdição universal que, por sinal, na Europa, retraiu-se. [3] 

É incontroversa a análise de que, nos dias de hoje, esfriou-se o entusiasmo dos Estados pela Jurisdição Universal, em parte, pelo receio da posição dos Estados Unidos.

Conclusão

Nesse contexto, a ordem de investigação contra o soldado israelense de férias no Brasil é um flagrante ponto fora da curva do Direito Internacional Público, e por ele deveria ser rejeitado por não haver jurisdição brasileira sobre os eventuais crimes de guerra, humanitários, de direitos humanos ou genocídio na Faixa de Gaza.

Agora, quando a própria polícia federal, data vênia, assume a posição jurídica de dizer o direito à Justiça Federal, parece que, realmente, a entropia mostra uma outra dimensão no sistema jurídico brasileiro, uma alopoiese.

Infelizmente, assim, o Brasil acabou roubando a cena jurídica de fim de ano, e muito mal, no estágio internacional, onde se tornou objeto de piada (anão na diplomacia e perneta no direito internacional).


1. Da Autopoiese à Alopoiese do Direito, de Paola Cantarini, consultado em https://estadodedireito.com.br/da-autopoiese-a-alopoiese-do-direito/, em 08-01-2025

2. International Criminal Court: The failure of states to enact effective implementing legislation, consultado em 8-1-2025. Ainda, Brazil and the Rome Statute, https://www.pgaction.org/ilhr/rome-statute/brazil.html, consultado em 8-1-2025. Ainda, https://www.icc-cpi.int/sites/default/files/Joining-Rome-Statute-Matters.pdf, consultado em 8-1-2025.

2.1 IBA International Criminal Court and International Criminal Law Programme, em https://www.ibanet.org/document?id=Strengthening-the-International-Criminal-Court-A-Guide-for-States-Parties-2nd-Edition, em 8-1-2025.

3. Consultar: Jurisdição Penal Universal: Nova Abordagem nos Países da Europa Ocidental, https://acrobat.adobe.com/id/urn:aaid:sc:EU:ff9f3f93-ca96-4fb4-af79-ffa9d3fa0093, em 08-01-2025. Veja também sobre a Jurisdição Universal na Espanha, https://www.un.org/en/ga/sixth/79/universal_jurisdiction/spain_e.pdf , consultado em 8-1-2025.

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