Integração entre Direito Internacional Público e Privado

  • Introdução
  • O Estado
  • O Direito Internacional
  • Dicotomia: Direito Internacional Público e Privado
  • As Teias Normativas de Direito Internacional Público e Privado
  • Conectividade dos Sistemas Legais Domésticos e Internacional. Monismo Kelseniano e Dualismo de Heinrich Triepe
  • Conclusão
Introdução

A Justiça Internacional é o instrumento do Direito Internacional, pois por ela se realizam os seus preceitos e se concretizam os seus objetivos diante de uma disputa. A definição técnica de Justiça Internacional, que se faz a partir do conceito do seu objeto (a disputa internacional), é complexa. Todavia, em termos simples e propedêuticos, pode-se conceber a Justiça Internacional, sob o prisma da ciência jurídica, como

“O conjunto de normas, princípios e costumes de direito internacional aplicável à prevenção e à solução pacífica de disputas internacionais.”

Ainda, deve-se entender o Direito Internacional como uma projeção ou desdobramento do Direito Nacional dos Estados no plano extraterritorial, cujas peculiaridades não justificam a concepção dual de Direito Doméstico e Direito Internacional, como se entre eles houvesse uma solução de continuidade. Ora, podemos dizer em termos simples:

A propósito, vale lembrar o conceito de disputa dado pela Corte Permanente de Justiça Internacional, há, no caso O primeiro passo na jornada para se entender os órgãos judiciais supranacionais, como eles são criados e atuam é dado na direção da compreensão do Direito Internacional como uma realidade normativa contínua, e não bipartida em Direito Internacional Público e Privado

“O Direito Doméstico é o instrumento da relação do Estado com as pessoas, e das pessoas entre si, sob sua soberania, enquanto o Direito Internacional é o instrumento da relação do Estado com as pessoas e outros Estados fora da autoridade de sua soberania.”

O objetivo do post não é um pontuar a verdade teórica das doutrinas envolvidas no Direito Internacional, sua divisão e relação com os sistemas legais municipais (domésticos), mas uma mera abordagem introdutória que incentive o interesse pelo estudo da Justiça Internacional.

O Estado

A origem e o fundamento do Direito levam-nos a intrigantes discussões filosóficas, existenciais e até mesmo religiosas infindas, que se perdem em distantes brumas de um passado imemoriável, onde realidade, lenda e fé se confundem em torno da fundação das sociedades humanas, a constituição do Direito e a organização do Estado. Contudo, é necessário um ponto de apoio dogmático que sirva de alavanca para desenvolvimento de uma construção teórica do Direito. Embora o ponto de partida alavancador seja sempre disputável por pressupostos lógicos movediços, toda teoria deve ser considerada válida desde que amparada pela coerência. As centenas de anos de teorização e o enfileiramento de sábios juristas que vêm e vão, sem que uma verdade absoluta consiga se erguer e sobretudo se manter, autorizam o entendimento de que as discussões mais profundas sobre o Direito são relativas e todas trazem uma verdade apenas parcial, de modo que a escolha de uma ou outra se resume a mero ponto-de-vista.

Adotamos a concepção do Positivismo Jurídico. Por isso, o ponto de partida para discussão do direito positivo é o Estado, repita-se, embora essa catapulta inicial que nos lança da sociedade para o direito seja sempre questionável. Por exemplo, podemos citar a observação que faz BOBBIO no sentido de que o Jusnaturalismo aponta o Positivismo Jurídico como “responsável” pela “concepção estatolátrica” e seus efeitos nos regimes totalitários por dar fundamento à “obediência incondicional à lei do Estado”:

O Direito Internacional

Posto que o Estado é o ponto de partida do Direito e, consequentemente, do Direito Internacional, o aspecto econômico da organização da sociedade pode ser considerado o “fundamento” ou a mola propulsora do Direito e do Estado. Essa ideia se aplica ao Direito Internacional, como explicam Eric A. Posner e Alan O. Sykes:

A realidade mostra quão plausível é a concepção de ser o objetivo econômico a pedra angular do Direito Internacional. Basta perguntar-se qual é a entidade intergovernamental global mais acedida pelos Estados: É a Organização do Comércio Internacional que abriga 164 nações, perdendo apenas para a ONU, que reúne 193 Estados (e dois observadores, Vaticano e Palestina).

Em termos simples, o Direito Internacional é o conjunto de normas fundadas em tratados, acordos, contratos, costumes e princípios que governam a relação dos Estados Soberanos entre si e também a relação entre os seus nacionais, tendo por múltiplos objetivos a paz, o equilíbrio e o desenvolvimento das sociedades nacionais no mundo, e, consequentemente, os seus pressupostos são soberaniaconsentimentoextraterritorialidade e a supranacionalidade. O objeto do Direito Internacional se estende a todas as áreas de interesse humano, tais como Fronteiras, Territórios, Mar, Meio Ambiente, Comércio, Investimento, Finanças, Direitos Humanos no mais amplo sentido, Guerra, Diplomacia, assuntos Civil e Penal etc. Quando as normas internacionais se aplicam diretamente aos Governos e criam relações jurídicas imediatas e exclusivas entre eles, tais normas são consideradas constituintes do Direito Internacional Público, por exemplo, as normas de direitos humanos em geral. Por outro lado, quando as normas internacionais são criadas para ordenar relações primárias entre os nacionais dos Estados em suas mais diversas dimensões, tais normas são ditas de Direito Internacional Privado. Reputamos equivocado o entendimento de que o Direito Internacional Privado é um conjunto normativo doméstico que visa a dirimir “conflito de leis”

Dicotomia: Direito Internacional Público e Privado

A dicotômica divisão do direito internacional em público e privado é controversa não só quanto à sua efetiva existência (e real necessidade/utilidade) como também quanto à sua própria origem. Porém, essa concepção dualista do Direito Internacional é difundida irreversivelmente, por mais que seja criticada.

É recomendada a leitura de Kelsen´s Theory of International Law (Stern, W. B. “Kelsen’s Theory of International Law.” The American Political Science Review, vol. 30, no. 4, 1936, pp. 736–41. JSTOR, https://doi.org/10.2307/1947949. Accessed 1 July 2024), não tanto para se credenciar a visão positivista monista de Kelsen como a mais acertada, e sim pelo valor como uma leitura introdutória filosófica do Direito Internacional e aspectos relevantes de sua concepção em face de conceitos como a SOBERANIA, o CONSENTIMENTO e a SANTIDADE DOS CONTRATOS (Pacta Sunt Servanda).

Complementarmente, pode ser lido também as Condições Essenciais da Justiça Internacional (Kelsen, Hans, and John H. Herz. “Essential Conditions of International Justice.” Proceedings of the American Society of International Law at Its Annual Meeting (1921-1969), vol. 35, 1941, pp. 70–98. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/25657047. Accessed 1 July 2024)

Outra leitura recomendada sobre o Direito Internacional, que serve de porta de entrada para o seu entendimento à luz das categorias Público e Privado, é  The Constitutional Structure of International Society and the Nature of Fundamental Institutions, de Christian Reus-Smit (Reus-Smit, Christian. “The Constitutional Structure of International Society and the Nature of Fundamental Institutions.” International Organization, vol. 51, no. 4, 1997, pp. 555–89. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/2703499. Accessed 1 July 2024).

Recomenda-se também pela simplicidade e objetividade, a leitura de International Law, de Malcolm D. Evans, Oxford University Press, disponível na rede mundial de computadores (e-book).

Ainda, é recomendada a leitura de Akehurst´s Modern Introduction to International Law, by Peter Malanczuk, seventh edition, que pode ser encontrado com facilidade na rede mundial de computadores. Trata-se de um manual com explicações objetivas e simples para consulta rápida.

De qualquer maneira, é necessário se registrar que não se deve conceituar o Direito Internacional Privado como o direito destinado ao “conflito de leis” como é geralmente difundido. O Direito Internacional Privado, assim como o Direito Internacional Público, são ramos do Direito que disciplinam diferentes aspectos das relações entre pessoas, entre Estados, entre Estados e pessoas, em função do vínculo da internacionalidade. Também não é apropriado, embora seja compreensível, a ideia de que o Direito Internacional Público rege interesses ou a relação entre os Estados. Na realidade, essa concepção se prende à ultrapassada concepção do jurista romano Ulpiano, o qual dividiu o Direito em Público e Privado, exatamente, considerando uma linha divisória entre o interesse público e privado.

As Teias Normativas de Direito Internacional Público e Privado

A produção das normas públicas e privadas de direito internacional pelas diversas organizações (intergovernamentais e não-governamentais), que atuam globalmente nos mesmos setores, outras em âmbitos regionais, por exemplo, o marítimo, gera uma caótica superposição de verdadeiras teias normativas que, não raro, interpolam seus comandos legais, exigindo, por um lado, conhecimento especializado aprofundado de cada uma daquelas teias normativas e, por outro, sua concatenção com conhecimento holístico, de modo que haja uma linha de interligação traçada pela coerência finalística dos múltiplos sistemas envolvidos.

A essas complexas teias normativas se prendem uma sucessão de contratos que precisam ser alinhados entre si no desdobramento de uma cadeia econômica em cujas pontas destinatárias estão nações distantes que comercializam pelo mar; ao mesmo tempo, aqueles contratos precisam ser sotopostos às respectivas convenções regentes (públicas e privadas), sob pena de distorções que acarretam perdas ou danos de expressiva monta, repita-se, especialmente no Direito Comercial Internacional Marítimo, que é reverberado por tais teias. Se houvesse mesmo uma dicotomia entre as constelações internacionais de normas públicas e privadas, seria necessária uma interface entre aquelas teias normativas, o que, na realidade, não existe. Não há esse modem porque não se vê um tradutor de distintas linguagens normativas público-privadas.

Do produtor de comodities no Brasil (soja, por exemplo) ao comprador destinatário (China, por exemplo), um longo caminho é percorrido pelo direito doméstico do Brasil; do inicial contrato doméstico de venda, por exemplo, uma exportação indireta com uma trading vendedora (empresa comercial exportadora), segue-se um contrato de intermediação internacional com um agente que, por sua vez, conecta-se a outro agente por um contrato de intermediação que, então, fecha o circuito de aproximação com uma segunda trading compradora. Conciliados os interesses, concretiza-se a venda internacional que, assim, deve seguir um padrão normativo (Câmara Internacional de Comércio, por exemplo).

O tipo da venda internacional escolhido, a saber, por exemplo, o Incoterm FCA (Free Carrier) precisará ser alinhado com o contrato de transporte marítimo e suas cláusulas, por exemplo, de acordo com o padrão BIMCO. A própria venda internacional depende da vinculação do negócio às cláusulas de resolução de disputas (arbitrais), as quais abrem uma diferente ordem de necessidade de conexão jurídica dos Estados envolvidos com convenção de arbitragem e, especialmente, o reconhecimento e execução de seus julgados! Ainda, para além do seguro internacional, os valores da venda são expressivos e, constantemente, são necessárias intermediações bancárias cuja atuação também depende de práticas padronizadas ou uniformes de comércio exterior, especialmente, quando a operação de venda depende de crédito bancário, o que ocorre no mais das vezes.

Além da parceria entre os nacionais comerciantes no segmento particular, há a parceria sobranceira dos respectivos Estados no plano público, seus acordos individuais e as convenções a que aderem na Organização Internacional do Comércio. Porém, nem sempre as aduanas dos Governos cujos nacionais participam de um negócio comercial controlam o movimento de entradas e saídas de mercadorias uniformemente, podendo uma delas adotar padrão internacional, por exemplo, da UNCITRAL, que pode afetar a segurança comercial das vendas financiadas.

A complexidade da relação comercial sob as normas internas dos Estados com as normas internacionais, sejam elas de organizações públicas ou privadas, notamente, no transporte marítimo, desenvolve-se desembaraçadamente, com seus eventuais gaps preenchidos por costumes comerciais, com tal desenvoltura que é inimaginável o dualismo entre o direito interno dos Estados e o internacional. As normas e padrões internacionais da Câmara Internacional do Comércio, por exemplo, que se subsumem ao Direito Internacional Privado, conectam o comércio entre diferentes sistemas legais, são respeitadas e aplicadas pelos tribunais, sem que exista uma lei doméstica dos países reconhecendo a validade delas!

Conectividade dos Sistemas Legais Domésticos e Internacional. Monismo Kelseniano e Dualismo de Heinrich Triepe

A prática do direito internacional, portanto, em especial, no comércio, levantando a franja teórica da concepção dualista do direito internacional, descobre uma realidade contínua do direito doméstico dos Estados com o direito internacional por esses mesmos Estados respeitado, criado ou reconhecido como sendo decorrente de princípios gerais do direito ou dos costumes.

Não é exagero imaginar-se que os sistemas legais domésticos apenas se desdobram por sobre os “muros territoriais” e, já no ambiente extraterritorial, passam a se chamar de sistema legal internacional, cuja natureza pública e privada de sua existência é, de fato, uma replicação no plano extraterritorial do que afirmou Ulpiano sobre o Direito Romano, numa perspectiva territorial do Direito só válida para uma “categorização teórica” que, se por um lado, glamouriza o Direito, por outro, acaba por confundir a sua realidade com a embaralhada que é o conceito de “interesse público” e “interesse privado”, cuja distinção é de nenhuma diferença.

Como se vê, no dinamismo do Direito Comercial Internacional se evidencia a contradição da ideia de que há uma sinapse entre os sistemas normativos nacionais e o internacional. Falando especialmente no plano das arbitragens comerciais internacionais, Robert Y. Jennings faz uma arguta observação:

“As disputas internacionais comerciais não se ajustam aos modos ortodoxos dos processos de disputa – Elas ficam com de pernas abertas com cada pé em um lado das fronteiras do direito estrangeiro e da lei doméstica, e levantam questões que não se encaixam facilmente na categoria de direito internacional privado”Robert Y. Jennings

Robert Y. Jennings
Conclusão

O Direito Internacional, produzido pelos Estados e pelas organizações não-governamentais, constitui, contemporaneamente, uma unidade com o Direito Nacional dos Estados. A evidência da permeabilidade entre o Direito Internacional e os sistemas legais nacionais é testemunhada pela Comunidade Europeia, pelo funcionamento de suas instituições supranacionais com os círculos internos de cada um dos vinte e sete Estados-membros, como explica KIRCHMAIR1.

Se o Direito Internacional e o Direito Nacional dos Estados constituem uma unidade, por outro lado, a subdivisão do Direito Internacional em Público e Privado não se justifica pela realidade, onde essa distinção não pode ser comprovada, pelo contrário, é negada.

Quando se estudam as disputas internacionais e a solução delas pelos órgãos judiciais nacionais e internacionais, verifica-se com mais clareza o artificialismo da categorização pública e privada do Direito Internacional, e a própria separação entre o Direito Internacional e o Direito Nacional dos Estados, como aponta JENNINGS2. E isto porque as disputas internacionais são julgadas pelas cortes nacionais também, não sendo objeto exclusivo dos órgãos da Justiça Internacional.

As muitas organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e suas diversas agências são produtoras de Direito Internacional Público e Privado, já que são organizações intergovernamentais que coexistem, na verdade, com outras entidades semelhantes e que também produzem normas internacionais.

Assim, por um lado, enquanto a ONU, a UNCITRAL (Comissão Internacional das Nações Unidas sobre Direito Comercial), a Conferência de Haia de Direito Internacional Privado  e o UNIDROIT (Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado) são entidades intergovernamentais produtoras de Direito Internacional, por outro lado, a Câmara Internacional de Comércio – CIC, que é organização de natureza internacional não-governamental, e outras congêneres, são fontes de direito internacional privado comercial de relevância também. É a partir da aplicabilidade normativa de direito internacional privado comercial, tutelado pela produção normativa intergovernamental, seja no plano público seja no privado, que se pode entender de modo holístico como, na realidade, o Direito Internacional não só é uno como também, e principalmente, o Direito Internacional não é  uma realidade normativa à parte ou contraposta ao Direito Doméstico ou Municipal dos Estados, mas a projeção do Direito Nacional dos Estados, através da outorga mútua e recíproca de sua soberania, que constitui um desdobramento do próprio Direito no plano da relação entre os Estados e os seus nacionais além das barreiras territoriais. 


Uma visão filosoficamente crítica da dicotomia Direito Internacional Público/Privado: Cutler, A. Claire. “Artifice, Ideology and Paradox: The Public/Private Distinction in International Law.” Review of International Political Economy, vol. 4, no. 2, 1997, pp. 261–85. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/4177225. Accessed 1 July 2024.

Sobre a relação entre Direito Internacional Público e Privado: Stevenson, John R. “The Relationship of Private International Law to Public International Law.” Columbia Law Review, vol. 52, no. 5, 1952, pp. 561–88. JSTOR, https://doi.org/10.2307/1118800. Accessed 1 July 2024.

Leitura que descreve o Direito Internacional Público e Privado como integrantes de uma realidade legal única (com a qual concordo):Public International Law versus Private international Law: Reconsidering the Distinction by Susan L. Karamanian (publicaciones_digital_XL_curso_derecho_internacional_2013_Susan_L_Karamanian.pdf (oas.org)

Sobre a história do Direito Internacional Privado a partir do Direito Romano: Mills A. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly. 2006;55(1):1-50. doi:10.1093/iclq/lei066

Ainda uma abordagem histórica do Direito Internacional Privado na sua suposta origem no Direito Romano:

Yntema, Hessel E. “The Historic Bases of Private International Law.” The American Journal of Comparative Law, vol. 2, no. 3, 1953, pp. 297–317. JSTOR, https://doi.org/10.2307/837480. Accessed 1 July 2024.

Uma leitura sobre a aplicação do Direito Internacional Privado pela Corte Internacional de Justiça: Erades L. Application of Private International Law by the International Court of Justice. Nederlands Tijdschrift voor Internationaal Recht. 1962;9(4):145-153. doi:10.1017/S0165070X00034938

  1. Kirchmair L. Dualism and Kelsenian Monism. In: Rethinking the Relationship between International, EU and National Law: Consent-Based Monism. ASIL Studies in International Legal Theory. Cambridge University Press; 2024:11-58. ↩︎
  2. A. Redfern and M. Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration, 4th ed., London. Sweet & Marxwell, 2004, pp. 62-63. ↩︎
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