Agência Nacional de Aviação Civil: Uma caçula sem sorte
Introdução
Parece que é um encontro marcado…
Em 2.000, o Brasil “engravidou” da Agência Nacional de Aviação Civil por Fernando Henrique Cardoso, mas ela nasceu no casamento do Brasil com Lula que, então, teve de ser o “pai da criança”, convenhamos, uma paternidade indesejada, mas Lula foi “responsável” e a “registrou em seu nome”, sob o cauteloso olhar do seu então super Ministro José Dirceu, podemos dizer, “padrinho” da ANAC “em Cartório”.
“No religioso”? Não houve batismo.
Por sua infância turbulenta, com grandes azares, pobre ANAC, estou certo de que ficou pagã.
Vinte anos depois, Lula e sua filha ANAC se reencontram.
Ele, bem mais velho, no seu terceiro mandato; ela, uma “mulher de vinte anos” típica de sua geração tech!
Revendo a trajetória de pai e filha de 2005 a 2025, é pela resiliência, pela invulgar capacidade de ficar em pé aos golpes que teriam levado muitos ao nocaute que podemos dizer que “a cara de um é o focinho do outro” (sic)!
Desde Novembro de 2.000
O Presidente Lula, já no seu primeiro mandato (2003), era contra a existência das agências reguladoras, mas foi obrigado pela pressão internacional da Organização da Aviação Civil Internacional a criar a agência nacional de aviação civil. A OACI é um órgão intergovernamental que coordena a aviação civil mundial, o qual vinha pressionando o Brasil, exigindo que o país tivesse uma “organização interna” da aviação civil mais moderna e semelhante às congêneres no mundo. Alegavam as autoridades internacionais da aviação civil que era tão grande a confusão legal no direito aeronáutico interno brasileiro, que não se sabia ao certo quem era, no Brasil, a “autoridade de aviação civil”.
Na realidade, quando Lula assumiu o Governo, o embrião da ANAC, que vinha de longa e turbulenta gestação desde o Governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), era para ter sido abortado, pois a ideologia política do Partido dos Trabalhadores, por ser Socialista, era incompatível com o liberalismo econômico (introduzido por COLLOR e aprofundado por FHC) que pressupõe a criação de agências reguladoras (ou autarquias especiais).
Pelo esforço do então poderoso Chefe da Casa Civil da Presidência da República, José Dirceu (01/2003-06/2005), a ANAC acabou sendo aprovada no Congresso Nacional em Agosto de 2005, praticamente, “do dia para noite”, sem que outros instrumentos regulatórios legais também fossem atualizados, no caso, o Código Brasileiro de Aeronáutica de 1986, que permanece até hoje como uma colcha de retalhos.
A ANAC era, até então, a última autarquia federal especial (agência de fins regulatórios de infraestrutura econômica) criada no Brasil. A caçula. Foi também a que mais sofreu. Padeceu da antipatia dos admiradores dos servidores militares do Departamento de Aviação Civil (DAC), então extinto, que a assumiram e a conduziram até que o Governo conseguisse preencher os seus quadros de servidores civis (especialistas, analistas e técnicos).
Muito mais do que esse seu “nascimento” um tanto “truncado”, historicamente, o que evoca mais atenção para os primeiros anos da ANAC é a sua “falta de sorte”, ao longo dos quais ela foi envolvida em tragédias aéreas (pelas quais não seria responsável nem em tese), investigação parlamentar, corrupção de diretoria e até mesmo a prisão de um diretor (2012).
Uma varíola política na infância
Foi assim que, meio de qualquer jeito, em 27/09/2005, Lula sancionou a Lei Federal nº 11.182, criando a ANAC.
É estranho dizer, mas, nada obstante cinco anos de projeto, a aprovação da ANAC foi “de improviso”.
Tirava-se, dessa maneira, a aviação civil brasileira da linha de fogo da OACI e, em troca, sua direção política foi jogada em uma cova de leões, onde quem entendia mais de aviação não tinha a menor vergonha de dizer que “avião dá marcha-ré”. Consequentemente, nos seus primeiros anos, a ANAC não só enfrentou dificuldades administrativas na gestão da aviação civil, como também passou por uma “varíola política” tão grave que, por pouco, não foi extinta logo nos seus primeiros anos de vida.
Ainda, um período de surpreendente má sorte começava junto com o nascimento da ANAC, sem que nenhum dos eventos tivesse qualquer relação causal com a nova agência. Era como se houvesse um fator Santos-Dumont sobre ela, a lembrar quão triste foi o fim do genial brasileiro “inventor do avião”.
2006 a 2007: Dois anos sinistros para a aviação brasileira
A bruxa estava solta.
Os problemas administrativos de “gestão” eram previsíveis. Afinal, a agência tinha que formar um quadro de servidores públicos (Especialistas, Analistas e Técnicos) que “nasceriam” a partir de aprovação em concursos públicos vindouros, com “insuficiente conhecimento teórico”, “sem nenhuma prática” de aviação civil e com a missão de gerir a complexa e específica infraestrutura aeronáutica, a qual também teriam que modernizar e alinhar com os congêneres internacionais. Ou seja, os novos funcionários tinham que aprender o modelo antigo e, a partir dele, construir um novo.
Para ajudar a resolver esse problema, de fato, o menor dos que existiam, de início, a solução legal foi colocar os experientes oficiais e demais integrantes da Força Aérea Brasileira (lotados no extinto Departamento de Aviação Civil) como responsáveis por um “período de transição”, não só respondendo pela ANAC em termos técnicos, como também “treinando” os novos servidores civis que fossem chegando, à medida que os concursos públicos fossem realizados.
Os tumultos políticos surgidos, todavia, não eram esperados.
Empossada em Março de 2006, a primeira equipe de diretores da ANAC, enfrentando acusações de corrupção e incapacidade de gestão, não chegou ao fim e renunciou. Uma situação sem precedentes nas demais agências.
Feliz Aniversário, ANAC: O GOL 1907 caiu!
Antes, em 2005, com o nascimento da ANAC, perecia a VARIG (histórica e importante empresa de linha aérea brasileira), entrando em recuperação judicial por problemas econômicos; depois, outros acontecimentos terríveis apareceram confirmando o que dissera Lulu Santos, O Último Romântico, “(…) já que a morte cai do azul”.
No aniversário de um ano da ANAC (criada em 27 de Setembro de 2005), acontece o maior acidente aéreo do Brasil com o GOL voo 1907 na Serra do Cachimbo, vitimizando 154 pessoas, em 29 Setembro de 2006.
Apagão Aéreo
Como diz a expressão popular, “desgraça pouca é bobagem”. Então, pelas mãos do acidente da GOL, vieram problemas políticos que afetaram os aeroportos e o tráfego aéreo, visto que se atribuía parte da responsabilidade do acidente ao DECEA – órgão que presta o serviço de controle de tráfego aéreo e integra a FAB. Esse período ficou conhecido como o “apagão aéreo”, marcado por “greve” de controladores militares, intermináveis filas em aeroportos e comoção social.
Instaurou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI do Apagão Aéreo. Outro fato sem precedentes em termos de agências reguladoras, mas… Em termos de avião civil brasileira, sem novidades: Houve uma outra igualzinha em 1960.
Realmente, abram-se parênteses… Um dos aspectos mais intrigantes da observação histórica, ao menos da aviação civil brasileira, é que ela não se constitui de eventos que se desdobram num plano retilíneo, e sim circular, no qual se verifica que as pessoas mudam, mas os fatos político-econômicos não. Quando se olha para a CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara de 2007 (REQ nº 47/2007 – CPIAEREO, 08/05/2007 – para investigar as causas, consequências e responsáveis pela crise do sistema de tráfego aéreo brasileiro) e, voltando-se 47 anos no tempo, encontramos a RES nº 38/1960, 25/08/1960, CPI- Comissão Parlamentar de Inquérito (para investigar a aviação civil, principalmente os aspectos relacionados com a segurança dos voos), surpreendemo-nos ao constatar que os fatos são os mesmos!
Causa perplexidade, porque, afinal, as pessoas que administravam a aviação em 1960 sequer estavam vivas em 2007!
Ora, se as pessoas deixaram de existir, o que permaneceu o mesmo ao longo desse meio século, não mudando? A mentalidade política. É ela que continuou a mesma e, por consequência, os fatos e as Comissões que os investigam também.
199 Mortos em Congonhas
Em termos de probabilidade, ninguém seria capaz de dizer que no primeiro ano da ANAC haveria o maior acidente aéreo brasileiro e, no seu segundo ano, um segundo acidente ainda maior que o primeiro. Assim, pouco menos de um ano mais tarde, em 17/07/2007, o acidente da TAM JJ3054 em Congonhas sobrepuja o da Gol na nossa história de aviação civil (199 mortos).
Dessa vez, apontou-se a infraestrutura aeroportuária em Congonhas como um dos elos causadores do acidente.
Sem prejuízo do respeito ao MPF, a denúncia contra a então diretora da ANAC, Denise Abreu, pela qual o Procurador da República pediu, no Processo nº 0008823-78.2007.4.03.6181, 24 anos de prisão por “responsabilidade no acidente” foi uma peça processual natimorta. Todos sabiam, desde o primeiro momento, que as condições da pista de Congonhas não foram nem causas, nem concausas daquela tragédia. Por isso, acertadamente, o TRF3 de São Paulo proferiu absolvição, coincidentemente, no aniversário de dez anos do acidente, 31 de Julho de 2017[1].
Em termos técnicos, não havia uma relação daqueles acidentes com a ANAC, ou com como ela vinha administrando a aviação civil em sucessão ao DAC, embora a agência estivesse cooptada pelos agentes regulados e fossem claros os indícios de corrupção de sua diretoria. Até o próprio acidente do Fokker – 100 do voo TAM 402, no Jabaquara-SP, acontecido 11 anos antes e que deixara 99 mortos, reverberava na imprensa em 31 de Outubro de 2007 – Dia das Bruxas – alimentando uma agitação política em torno dos diretores da ANAC.
Sem Protetores Institucionais
A reputação e a confiança na ANAC ficaram comprometidas diante da nação, mesmo, repita-se, não tendo a agência reguladora, em si mesma, nenhuma relação com as tragédias aéreas e os eventos políticos deles decorrentes.
Tanta falta de sorte somada ao desprestigio das agências reguladoras no governo do Partido dos Trabalhadores, à frente do Poder Executivo Federal, acabou que a ANAC, na prática, ficou sem a autonomia institucional que lhe assegurava a lei e, na realidade, foi, claramente, cooptada informalmente pelo Executivo Federal durante o primeiro mandato de Lula (2003-2006).
Naquele tempo, a ANAC tem uma poderosa “madrasta” no Poder Executivo, a Ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, além daquele “pai” que “assumiu a sua paternidade contra a vontade”. Abertamente, ela antipatizava com a agência, e nunca concordou com os beneplácitos do “padrinho civil” da ANAC, José Dirceu… Pobre ANAC!
Nelson Jobim, então Ministro da Defesa, comungava do entendimento de que a ANAC tinha que ser tratada como um órgão da administração pública federal direta, e com mão de ferro!
O discurso do Senador Jarbas Vasconcelos, em 2/8/2007, mede a “temperatura” do “clima” da aviação civil naquele segundo ano de ANAC. É engraçado (hoje, não naquele tempo). Recomendo ler.
Enfim, a ANAC sobreviveu
Mas, a Agência Nacional de Aviação Civil sobreviveu a toda aquela má sorte, a todas as diretrizes nada técnicas que lhe assinalaram.
Por isso, quero ser o primeiro a parabenizar a agência e lhe desejar mais outros, no mínimo, 20 anos de vida, com muita saúde, paz e prosperidade.
Melhoras ainda esperadas na relação da ANAC com os direitos dos consumidores
Hoje, quando penso em termos de ANAC, não vejo que ela foi uma boa substituição do DAC… Ela poderia ter sido uma boa substituição, se ela tivesse sido, no rigor da experiência do Common Law, uma agency. E ela não é. Então, para ser o que é, na prática, um órgão que cumpre um papel burocrático num contexto de apertada relação com a administração federal direta, teria sido melhor que continuássemos mesmo com o DAC, porque se gastaria menos e seria juridicamente coerente.
Peço apenas à Agência Nacional de Aviação Civil que seja mais efetiva na regulação do setor de infraestrutura aeronáutica, nomeadamente, na prestação de serviços de transporte aéreo público regular para proteção dos passageiros, de modo que esses não precisem “judicializar” tantas demandas e, assim, não causem mais tantos transtornos à Latam e ao seu CEO, Jerome Cadier. Isso é preocupante.
Então, por se poder dizer que a ANAC quase dá de ombros para os consumidores, é que avalio a Agência como alguém que não vai para além da Cidade de Dite (“Divina Comédia” de Dante Alighieri), mas que também não passa dela.
Esperando Godot
Em 1986, comecei a Faculdade de Direito. Colei grau em 1991. Fui professor de direito aeronáutico, piloto privado de avião, investigador de acidente aéreo, participei de curso de formação dos primeiros concursandos da ANAC em 2007, sempre explicando o Código Brasileiro de Aeronáutica (de 19 de Dezembro de 1986) e dizendo que se trata de um diploma “desatualizado de nascença”, mas que é “iminente sua atualização no Brasil”.
Trinta e nove anos se passaram. Desistiram do Projeto do Novo Código Brasileiro de Aeronáutica de 2000. Começaram um outro, o PLS 258/2016 – Senado Federal, o qual parece uma árvore de Natal de Shopping, com suas “351 Emendas”.
Mas sempre alguém fala: O Novo Código Brasileiro de Aeronáutica vai chegar.
Essa interminável espera pelo “novo” Código Brasileiro de Aeronáutica recorda o enredo da peça Esperando Godot do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989):
Quando, em En Attendant Godot, se levanta o pano, o público vê uma paisagem inteiramente vazia; só há, no meio, uma árvore solitária. Esse vazio é povoado por dois vagabundos, Estragon e Vladimir, que pararam ali para esperar um certo Godot: não sabem quando ele chegará, nem sequer sabem por que esperam. Mas estão esperando Godot. Já estão ligeiramente desesperando e desesperados, até de viver, pois não poderiam viver sem Godot. Mas ele prometeu chegar. E este é o pretexto dos dois para viver juntos e esperar juntos. Por que juntos? Tampouco sabem. De vez em quando, um deles já tentou separar-se do outro, talvez fazendo uma espécie de excursão. Mas sempre volta. Nada feito. Só resta esperar. Até quando? Perguntam. Ninguém responde. A paisagem e o céu continuam vazios. Não acontece nada (“Rien se passe”). O única fato é este: esperam. [2]
[1] “A causa do acidente, conforme estabelecida pelos citados laudos, é capaz por si só de tornar inconsistentes as principais acusações feitas contra os réus. Ainda que se pudessem comprovar ou imputar tais condutas aos acusados, faltaria o nexo causal, pois, de acordo com os laudos, não foram as condições da pista, e o deslizamento ou aquaplanagem que daí poderiam advir, o fator determinante do acidente. Em tese, segundo os laudos, como visto acima, ainda que a pista estivesse em condições melhores, a falha no posicionamento dos manetes teria provocado o sinistro.”