Um Estudo Preliminar à Abordagem do SAC – Sistema de Aviação Civil do Brasil1
Introdução: Conceito de sistema à luz da teoria de Luhmann
É importante se ter um entendimento mais profundo do que é sistema. Para tanto, vamos introduzir a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Niklas Luhmann.
O que é sistema? Essa palavra pode ser conceituada sob diferentes formas, mas o seu significado dentro da Ciência Jurídica e, em particular, no Direito Aeronáutico, deve corresponder ao sentido que lhe deu Niklas Luhmann, a partir das pesquisas dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela. Ou seja:
“Os sistemas jurídicos são como os sistemas sociais que, por sua vez, são como os sistemas biológicos: Um conjunto de unidades organizadas entre si e que, tendo funções diferentes, agem sinergicamente de tal modo que, sendo internamente unidades individuais, externamente são partes inseparáveis do todo destinado a um fim comum. Por exemplo, um ciclista é um sistema. A bicicleta é um sistema físico (de coisas que são organizadas e que a transformam em um veículo). O ser humano é um sistema biológico (organizado com alto grau de sofisticação intelectual, capaz de gerar energia mecânica pelo movimento de seus membros). Ora, quando o humano monta na bicicleta e passa a aplicar sua energia naquele sistema, ambos agem entre si com tal sinergia que se transformam em um terceiro sistema cuja existência e funcionalidade dependem da interação e da sinergia do biológico com o mecânico. Quando o sistema humano sai da bicicleta, ela volta a ser um potencial de transporte apenas, encostado na parede, enquanto o humano é um gerador de energia com potencial de se transportar sobre rodas, mas que está se movendo sobre os pés.”
As aludidas pesquisas biológicas dos cientistas chilenos eram conduzidas com o objetivo de descobrir o que é a “vida”, e “não-vida”, e eles concluíram que vida é o sistema que se autorreproduz, ou seja, é autopoiético. Logo, um vírus não é um ser vivo, visto que não é capaz de se reproduzir, senão parasitando uma célula viva.
Luhmann tomou por empréstimo os conceitos daquelas pesquisas biológicas chilenas e desenvolveu a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, explicando que a sociedade, tal qual os seres vivos, são formadas por sistemas de natureza autopoiética. Vale dizer, Luhmann diz que os sistemas sociais agem como as células, à medida que tais círculos sociais são “fechados” operacionalmente, porque não recebem “inputs” externos do ambiente que os cerca quando se reproduzem para se manterem vivos (fechamento operacional); porém, os sistemas têm uma “estrutura” que, ao mesmo tempo que é responsável pela sua autorreprodução independente (ou autodeterminação) das influências externas, auto-organizando-se, também permite uma “conexão” com o ambiente ou com outros sistemas, sendo influenciado por eles de uma maneira ou de outra, de acordo com aquela estrutura mesma, porque os “contatos” externos são interiorizados, compreendidos e produzem efeitos de acordo com a estrutura do próprio sistema.
Alguns exemplos vão elucidar os conceitos de “sistema”, “autopoiese” (autorreprodução independente ou auto-organização ou autodeterminação fechada às influências externas) e “estruturas de sistemas.”
Imagine um beduíno que vive sob escaldante sol e um esquimó que passa sob temperaturas gélidas. Ambos têm processos de multiplicação celular exatamente igual. Seus cabelos, suas unhas etc. têm o mesmo desenvolvimento, suas células estão sujeitas a mitose e a meiose rigorosamente igual, não se influenciando pelas altíssimas ou baixíssimas temperaturas exteriores tão diferentes que um e outro vivem. Essa é, portanto, a capacidade autopoiética dos seres vivos e que Luhmann sustenta haver também nos sistemas sociais.
Agora, imagine-se a si mesmo algum tempo no escuro de uma sala e, então, uma forte e repentina luz é acesa no teto. Suas pupilas se contrairão em defesa, suas pálpebras se fecharão e abrirão pausadamente. Essas reações são causadas pelas estruturas oculares conectadas com suas estruturas nervosas. Tais reações são determinadas não pela “luz”, que são “pacotes de fótons” que “não entraram” em seu sistema nervoso, mas causaram uma “perturbação nele” por causa da sua estrutura ocular.
Mais um exemplo. Imagine uma música romântica, “My Prayer” (The Platters). Ela pode trazer a tristeza de uma recordação; mas, o seu sistema humoral não foi alterado porque a melodia “entrou em você”, mas porque ela “provocou efeitos” no seu sistema nervoso em razão de uma dada estrutura emocional sua. A mesma música pode, para outra pessoa, trazer a alegria de uma recordação totalmente diferente, de acordo com uma distinta estrutura mental (memória, associação de ideias etc.). Tais reações são discordantes, de acordo com as estruturas dos sistemas nervosos conectados com estruturas de sistemas emocionais diferentes, os quais, provocados pelos mesmos “estímulos de meios ambientes” que “não têm um contato com os sistemas, mas os influenciam” por meio de suas estruturas.
Essas “estruturas de conexão” dos sistemas com o exterior (meio ambiente e outros sistemas) são chamadas de “structural coupling” (estruturas de conexão).
Sistemas de Infraestrutura Aeronáutica Civil
Antes do atual Código de Aeronáutica (1985), houve outros dois, chamados “Código do Ar”: Um, em 1938 (DL nº 438); outro, em 1966 (DL nº 32). O Código de 1966, assinado pelo Presidente Castello Branco, disciplinava a aeronáutica (navegação no ar) de forma simples e, em seu art. 43, cometia a impropriedade de conceber “infraestrutura aeronáutica” de forma restrita, isto é, correspondente apenas à estrutura do aeródromo e os serviços de proteção ao voo que, então, dependiam da estrutura aeroportuária.
Um ano depois, veio o DL nº 200/67, o qual estabeleceu regras para a organização dos serviços na estrutura da Administração Federal, estabelecendo normas para a implantação de órgãos e controle de serviços organizados em sistemas que dependem de coordenação centralizada.
Após dois anos, veio o Decreto nº 65.144/69 que, sob a doutrina do Decreto-Lei nº 200/67, criou o SISTEMA DE AVIAÇÃO CIVIL dentro do extinto Ministério da Aeronáutica (substituído pelo Comando da Aeronáutica, a partir de 1999) e estabeleceu o extinto Departamento de Aviação Civil (DAC) como seu órgão central, portanto, responsável pelo controle e coordenação do sistema.
O Decreto Federal nº 65.144/69 definiu como elementos do sistema de aviação civil vários serviços que, no art. 2º, foram elencados numerus apertus: Serviços de transporte aéreo público e privado; os serviços aeroportuários destinados àqueles transportes, os serviços de homologação de equipamentos e produtos, as aeronaves e sua manutenção, o registro das aeronaves, o controle das empresas de transporte aéreo, os serviços de apoio à navegação aérea, a formação de pessoal da aviação civil etc.
Em 1986, com o advento do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), a infraestrutura aeronáutica passou a ter um conceito mais amplo (art. 25) e complexo, e constituída por dez sistemas:
(i) O sistema aeroportuário, (ii) O sistema de proteção ao voo, (iii) O sistema de segurança de voo, (iv) O sistema de registro aeronáutico, (v) O sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos, (vi) O sistema de facilitação, segurança e coordenação do transporte aéreo, (vii) O sistema de formação e adestramento de pessoal destinado à navegação aérea e à infraestrutura aeronáutica, (viii) O sistema de indústria aeronáutica, (ix) O sistema de serviços auxiliares e (x) O sistema de coordenação da infraestrutura aeronáutica.
É interessante notar que o CBA cuidou do conjunto de elementos da infraestrutura aeronáutica como “sistemas de serviços”. Então, o Decreto nº 65.144/69, criador do “sistema de aviação civil”, foi recepcionado, em 1985, pelo advento do CBA que, embora não mencione expressamente o “sistema de aviação civil”, acabou organizando a infraestrutura aeronáutica como sistemas também. Nota-se que o art. 2º, do Decreto chama de “atividades de Aviação Civil” o que o CBA passa a chamar de “sistemas”. Ainda, o CBA definiu como autoridade única desse grande conjunto de sistemas de infraestrutura aeronáutica o Ministério da Aeronáutica. Como vimos, com criação da ANAC em 2005, que é uma autarquia especial civil, o CBA foi parcialmente revogado.
Sistemas do Sistema de Aviação Civil (SAC)
Nem todos os sistemas da infraestrutura aeronáutica civil, contudo, são sistemas integrados ao SAC – Sistema de Aviação Civil. Daqueles listados no artigo 25, CBA, (iii) O sistema de segurança de voo e o (v) O sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos estão no Comando da Aeronáutica, fazendo parte, portanto, do sistema militar aeronáutico.
Os Núcleos dos Sistemas da Infraestrutura Aeronáutica Civil
A ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil, autarquia especial vinculada ao Ministério da Defesa, é a entidade central do SAC e, portanto, o núcleo coordenador e organizador daqueles sete sistemas descritos pelo artigo 25, CBA. O sistema de segurança de voo tem por núcleo um órgão do Comando da Aeronáutica (que substituiu o Ministério da Aeronáutica a partir de 1999), o DECEA – Departamento de Controle do Espaço Aéreo. Já o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos de acidentes aeronáuticos tem por núcleo um órgão também integrante do Comando da Aeronáutica.
A ANAC é vinculada, não subordinada, nem integrante, ao Ministério da Defesa por força de Lei Complementar, embora, a cada troca de Presidente, ela seja “vinculada” a Ministérios dedicados à aviação civil, por exemplo, o de Transporte, o de Portos e Aeroportos, ou o de Infraestrutura, conforme o gosto do Presidente que assume a República. Por isso, a ANAC lembra a “cama de Alice”, onde ela dorme em um lugar e acorda em outro, completamente diferente.
Uma Questão de Ordem Política
Então, os sistemas de infraestrutura aeronáutica civil estão, legalmente, divididos entre o Ministério da Defesa, que abriga a ANAC, e o Comando da Aeronáutica, em cuja estrutura estão os órgãos DECEA e CENIPA. Por isso, verificam-se que os sistemas de infraestrutura aeronáutica civil estão organizados em tornos de núcleos diferentes (ANAC, DECEA e CENIPA), os quais também se vinculam (ANAC) ou integram (DECEA e CENIPA) diferentes Ministérios. Essa organização, que não favorece a comunicação entre os sistemas, não tem outra explicação, senão a política federal e, de certa forma, ainda se justifica pela cultura brasileira burocrática e centralizadora, com tendência de se fazer do presidencialismo algo “espiritual”, que deve se estender a todas às áreas do federalismo.
Ainda, há de se lembrar da INFRAERO, a empresa pública de infraestrutura aeronáutica, criada pela Lei nº 5.862/72. Nada obstante com seus poderes muito esvaziados pelo moderno formato de outorga e concessão de aeroportos no Brasil, continua existindo e constitui um órgão que, relativamente submisso à ANAC, também representa um núcleo de poder, um comando decisões dentro do primeiro sistema, o sistema aeroportuário.
Nav Brasil – Serviços de Navegação Aérea
Quando imaginávamos que iríamos ao enterro da avó INFRAERO, fomos surpreendidos pelo aumento da família! A infraestrutura aeronáutica estava “grávida” de mais um filho, a Nav Brasil, criada pela lei nº 13.903/19, pela qual é criada uma outra empresa pública, a Nav Brasil Serviços de Navegação Aérea S.A., vinculada ao Ministério da Defesa “por meio do Comando da Aeronáutica”, a qual recebe parte da execução do sistema de proteção ao voo, até então totalmente atribuído ao DECEA e, em alguns aspectos, à atividade ancilar da INFRAERO.
Visão Panorâmica dos Sistemas de Infraestrutura Aeronáutica Civil e seus Núcleos
- Aula proferida em 2007, no Curso Preparatório para o 1 Concurso de Analistas da Agência Nacional de Aviação Civil do Brasil, criada pela Lei Federal n. 11.182/2005 ↩︎