Despolitizando a Ilegal Investigação do Soldado Israelense no Brasil


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Introdução

O mundo nunca esteve tão polarizado. Geopoliticamente, as forças se dividem entre Leste e Oeste; já na política interna dos Estados, extremam-se “direita” e “esquerda”. Porém, nem todos os eventos são causados por aquele sectarismo. A investigação do soldado Yuval Vagdani tem fundamento jurídico em uma equivocada interpretação judicial do Direito, embora tenha nítidos efeitos políticos internos (no Brasil) e externos (no cenário internacional, notadamente, na relação diplomática do Brasil com Israel e seus aliados). Todavia, é equivocado se considerar a investigação como congruente com o governo “de esquerda” (de Lula) ou incoerente com a política “de direita”, ainda identificada com Jair Bolsonaro.

Em uma palavra, o caráter jurídico e, portanto, apolítica da investigação do soldado israelense ampara-se na indevida aplicação da doutrina da Justiça Universal, a qual tem sido posta em prática por várias legislações, por exemplo, na França.

Jurisdição Universal

A relevância jurídica (e os importantes efeitos políticos internacionais) tem me levado a escrever sobre o tema: Justiça Universal e a Prisão de Assad e Universal Jurisdiction and International Jurisdiction (o texto está em Inglês, mas o site tem tradutor do Google). A ordem de investigação em face do soldado israelense Yuval Vagdani, em visita a turismo no Brasil, a propósito, é absolutamente semelhante à ordem de investigação francesa em face da visita do príncipe Saudita Mohammed bin Salman, quando de sua visita à França, em 28 de Julho de 2022.

Em uma ideia bem prática, o Estatuto de Roma de 1998, ao criar o Tribunal Internacional Penal (que ordenou a prisão do Presidente russo Putin e do Primeiro-Ministro israelense Netanyahu), por intermédio do seu sistema de cooperação obrigatório de sua Parte 9 (Monitoramento de Controle de Cooperação do Tribunal Internacional Penal – nesse post analisámos o sistema de monitoramento da cooperação penal internacional), institucionalizou uma jurisdição universal, pela qual os Estados aderentes do Estatuto ficam obrigados a colocar à disposição do TIP o seu sistema judiciário, de modo que, de acordo com suas regras, crimes de competência da jurisdição do TIP possam ser objeto não de julgamento, mas de coerção judicial cooperativa.

Assim, ao tomar a iniciativa de processar alguém por crime de competência da jurisdição do TIP, o sistema judicial doméstico dos Estados exerce jurisdição universal que não é, tecnicamente, uma Justiça Internacional; por outro lado, ao cooperar com o TIP, o sistema judicial doméstico dos Estados exerce cooperação (fundada no Estatuto de Roma) que se justifica à luz jurisdição universal, tornando-se, portanto, uma peça da Justiça Internacional, já que o TIP é uma entidade da Justiça Internacional. Vale dizer, um órgão judicial doméstico não se torna, tão só por exercer jurisdição universal, um órgão de Justiça Internacional.

Legislação Humanitária (sentido amplo) de que o Brasil é signatário

No plano do Direito Internacional, o Brasil é signatário dos seguintes documentos legais com viés humanitário (sentido amplo, incluindo o direito humanitário, que não se confunde com direitos humanos): AT – Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes; CAT-OP Protocolo Opcional da Convenção contra Tortura; CCPR – Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; CCPR-OP2-DP – Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos com vista à abolição da pena de morte; CED – Convenção para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados;  CED, Art.32 – Procedimento de comunicação interestadual no âmbito da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado; CEDAW – Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; CERD – Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; CESCR – Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; CMW – Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua Família. Famílias; CDC – Convenção sobre os Direitos da Criança; CRC-OP-AC – Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Participação de Crianças em Conflitos Armados; CRC-OP-SC – Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a venda de prostituição infantil e pornografia infantil; CDPD – Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio; IV Convenções de Genebra de 1949 (desde 29/06/1957); Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949 relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais (desde 05/05/1992); Declaração de reconhecimento da competência da Comissão Internacional de Apuramento de Fatos prevista no artigo 90.º do AP 1 (desde 23/11/1993); Protocolo Adicional às Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais, de 8 de junho de 1977 (desde 05/05/1992); Protocolo Adicional às Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, relativo à Adoção de um Emblema Distintivo Adicional (desde 28/08/2009); Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Participação de Crianças em Conflitos Armados (desde 08/03/2004); Convenção da Haia para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (desde 12/09/1958); Protocolo da Haia para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (desde 12/09/1958); Segundo Protocolo à Convenção da Haia de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (23.09.2005); Convenção sobre a Proibição do Uso Militar ou Hostil de Técnicas de Modificação do Ambiente (desde 12/10/1984); Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (desde 20/06/2002); Protocolo para a Proibição do Uso de Gases Asfixiantes, Venenosos ou Outros e de Métodos Bacteriológicos de Guerra, Genebra (desde 28/08/1970); Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção e Armazenamento de Armas Bacteriológicas (Biológicas) e Toxínicas e sobre a sua Destruição (desde 27/02/1973); Convenção sobre a Proibição ou Restrição do Uso de Certas Armas Convencionais Que Podem Ser Consideradas Excessivamente Lesivas ou de Efeitos Indiscriminados (com os Protocolos n.º 1, li e ili) (desde 03/10/1995); Protocolo IV sobre Armas Laser Cegantes da Convenção de 1980 (desde 04/10/1999); Protocolo relativo à Proibição ou Restrição do Uso de Minas, Armadilhas e Outros Dispositivos, alterado em 3 de Maio de 1996 (desde 04/10/1999); Protocolo V à Convenção de 1980 sobre Armas e Explosiva Remanescentes de Guerra (desde 30/11/201O); Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção, Armazenamento e Uso de Armas Químicas e sobre sua Destruição (desde 13/03/1996); Convenção sobre a Proibição da Utilização, Armazenagem, Produção e Transferência de Minas Antipessoal e sobre a sua Destruição (desde 30/04/1999) e Tratado para a Proibição de Armas Nucleares na América Latina e no Caribe – Tratado de Tlatelolco (desde 29/01/1968).

Não existe uma convenção internacional sobre prevenção e punição de crimes contra a humanidade, a qual se encontra em estudos na ONU. Porém, o Estatuto de Roma define os crimes contra a humanidade.

Por outro lado, o  Estatuto de Roma, do qual o Brasil é parte e que constituiu o Tribunal Internacional Penal (ao qual o Brasil é obrigado a prestar cooperação quando solicitado), estabelece quatro crimes internacionais de jurisdição daquela Corte: GENOCÍDIO, CRIMES CONTRA A HUMANIDADE, CRIME DE GUERRA e CRIME  de AGRESSÃO.

A adesão do Brasil (e demais Estados) ao Estatuto de Roma torna obrigatório que tais Estados aderentes cooperem para que o Tribunal Penal Internal possa punir tais crimes, ao mesmo tempo em que determina que os Estados aderentes sejam pro-ativos na punição daqueles quatro crimes. Todavia, aquelas definições de crimes internacionais, criadas pela Assembleia de Estados Membros (com base nos poderes do Estatuto de Roma, relacionados aos direitos humanos e direitos humanitários), não se tornam fatos típicos na órbita da legislação doméstica dos Estados em geral. Tanto a obrigação de cooperar quanto a obrigação de definir na legislação doméstica e, consequentemente, punir aqueles crimes ficam na dependência de criação da necessária legislação doméstica dos Estados. Consequentemente, a promulgação do Estatuto de Roma (pelo DECRETO Nº 4.388, DE 25 DE SETEMBRO DE 2002) não cria as figuras penais típicas  de genocídio, crimes contra a humanidade, crime de guerra e crime de agressão. Essa lógica não se aplicam raramente, por exemplo, no caso dos Países Baixos, onde a legislação internacional se converte em legislação doméstica automaticamente. Porém, esse mecanismo é excepcional.

Projeto de Lei nº 4.038 de 2008 e a Lei de Genocídio (Lei Federal nº 2.889/1956)

No Brasil, está tramitando o Projeto de Lei nº 4.038/2008, que “dispõe sobre o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional, institui normas processuais específicas, dispõe sobre a cooperação com o Tribunal Penal Internacional, e dá outras providências”.

Logo, parte substantiva dos crimes tipificados no Estatuto de Roma não são típicos no território brasileiro.

Por outro lado, desde 1956 o gencídio é figura típica pela Lei Federal nº 2.889/56.

Fundamento Constitucional

A Constituição Federal é o amparo da inclusão daquela legislação de origem internacional no arcabouço jurídico doméstico, o que se verifica, exemplificativamente, pelos artigos 5º, LXXIX, § 3º e 109, V-A e XI, § 5º.

Conexão Legal da Investigação Federal do Brasil em face de soldado Yuval Vagdani

Não existe, tecnicamente, conexão de direito entre a prisão determinada pelo Tribunal Internacional Penal sobre o Primeiro-Ministro israelense Netanyahu e investigação determinada pela Justiça Federal brasileira sobre o soldado Yuval Vagdani; o que existe é conexão de fatos, ou seja, os fatos são os mesmos, ou seja, os atos de guerra na Faixa de Gaza.

(…) No que diz respeito aos crimes, a Câmara encontrou motivos razoáveis para acreditar que o Sr. Netanyahu, nascido em 21 de outubro de 1949, primeiro-ministro de Israel na época da conduta relevante, e o Sr. Gallant, nascido em 8 de novembro de 1958, ministro da Defesa de Israel na época da suposta conduta, são responsáveis criminais pelos seguintes crimes como coautores por terem cometido os atos em conjunto com outros:  o crime de guerra da fome como método de guerra; e os crimes contra a humanidade de assassinato, perseguição e outros atos desumanos. (Primeira Câmara de Pré-Julgamento do Tribunal Penal Internacional)

 

Extraterritorialidade do Artigo 7º, Código Penal Brasileiro

Extraterritorialidade e jurisdição universal são semelhantes à medida que ambas promovem a dilação da  jurisdição judicial de um Estado sobre fatos penais não praticados em seu território, nem por seus nacionais, estendendo-a sobre indivíduos que praticam crimes foram dos limites das suas fronteiras, atendidas certas condições. Porém, extraterritorialidade e jurisdição universal se distinguem à medida que elas têm fundamentos técnicos diferentes.

A extraterritorialidade se baseia na legislação do próprio Estado e depende de acordos internacionais de direito internacional penal privado.

Podemos  citar o caso de dois  cidadãos russos que foram detidos pela polícia federal brasileira em águas internacionais, à bordo de uma embarcação de bandeira das  Ilhas Virgens Britânicas, na posse de 4.304,10Kg de “maconha”.

A Justiça Federal brasileira teve jurisdição sobre os fatos, mesmo tendo acontecido o crime fora do Brasil, em águas internacionais, e ainda que praticados por estrangeiros (russos), porque, primeiro, o tráfico ilícito pelo mar é um crime que o Brasil se obrigou a reprimir, estando,  portanto,  atendido um pressuposto de extraterritorialidade (artigo 7º, inc. II, alínea “a”,  Código Penal), sendo que essa  obrigação resulta da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, internalizada pelo Decreto nº 154/1991. Ademais, também restaram satisfeitas as condições cumulativas do § 2º, daquele mesmo artigo 7º. (Tribunal Regional Federal da 5ª Região TRF-5 – HABEAS CORPUS CRIMINAL: HC 0814281-14.2021.4.05.0000). Veja: United Nations Convention against Traffic in Narcotic Drugs and Psychotropic Substances, Vienna, 20 December 1988.

 

Posição (Correta) do Governo Brasileiro sobre Jurisdição Universal no Direito Pátrio

Como já afirmado em outros posts sobre Jurisdição Universal, um conceito mais seguro com limites mais precisos desse instituto de Justiça Universal é objeto de estudos no âmbito do Sexto Comitê (órgão subsidiário) da Assembleia Geral das Nações Unidas, que já produziu um trabalho sobre esse tema. Perante aquele Comitê, acertadamente, pronunciou-se a diplomacia brasileira nos seguintes termos (doc. abaixo):

No âmbito jurídico brasileiro, é necessária a promulgação de legislação nacional que possibilite o exercício da jurisdição universal ou para perseguir e julgar uma ação ou omissão, que é considerada crime no direito internacional. Não é possível, portanto, exercer jurisdição universal sobre um crime apenas sob o direito internacional consuetudinário, porque a falta de legislação específica resultaria em uma violação do princípio da legalidade. Além disso, em nenhuma hipótese o Brasil exerce sua jurisdição “in absentia”, quando o infrator não está em seu território.

 

Conclusão: Ilegalidade da Investigação Determinada pela Justiça Federal Brasileira contra o Soldado Israelense

Como vimos, a investigação determinada pela Justiça Federal brasileira não tem conexão jurídica com a investigação que tramita no Tribunal Internacional Penal, no curso da qual foi determinada pela 1ª Câmara de Pré-Julgamento a prisão do Primeiro-Ministro Netanyahu.

Não existe lei brasileira definindo os crimes estabelecidos pela Assembleia Geral dos Estados que governa a instituição que abriga o Tribunal Penal Internacional.

A lei que estabelece o crime de genocídio (Lei Federal nº 2.889/1956) aplica-se no território nacional. Extraterriotorialmente, sua extensão dependeria do artigo 7º, do Código Penal. Porém, tal extraterritorialidade não se enquadra nos permissivos dos incisos I e II.

Quanto ao genocídio do artigo 7º, inc. I, alínea d, não é aplicável, porque o soldado Yuval Vagdani não é brasileiro, tampouco eventual crime de genocídio foi cometido no território brasileiro.

Quanto ao inciso II, daquele mesmo artigo 7º, não existe entre o Brasil e a Autoridade Palestina um tratado ou convenção pelo qual o Brasil tenha se obrigado a reprimir, por exemplo, crimes de guerra ou genocídio.

Enfim, a própria aplicação da doutrina da Justiça Universal não pode ser feita pretorianamente, sem lei expressa definindo, inclusive, quais crimes e condições subjetivas são necessárias para o exercício daquela modalidade de jurisdição excepcional. 

Por exemplo, o Direito Francês pode ser apontado como um exemplo de legislação em que a aplicação da jurisdição universal depende de expresso permissivo do Código de Processo Penal francês.

A ordem de investigação, portanto, não é resultante de uma posição política do Governo brasileiro, mas de uma decisão judicial equivocada.

A experiência quanto à visita do ex-Presidente do Sudão, Al-Bashir,  à África do Sul, entre 13 e 15 de Junho de 2015, é uma evidência de que a Justiça dos Estados tem autonomia para intepretar a legislação internacional, à luz de seu próprio direito doméstico, independentemente do posicionamento político do Governo representado pelo Poder Executivo. No caso aqui citado, o governo da África do Sul era contrário à prisão daquele presidente solicitada pelo Tribunal Internacional Penal. Porém, não foi aquele entendimento do North Gauteng High Court of South Africa. (Southern Africa Litigation Centre v. Minister of Justice 2015).

Assim, a noticiada investigação do  soldado Yuval Vagdani, em conexão de suas atividades na guerra entre Israel contra o Hamas, na Faixa de Gaza, nenhum relação tem com o Governo federal do Brasil e sim de uma interpretação jurídica inapropriada do Judiciário Federal.

De qualquer maneira, é certo que a equivocada decisão judicial trouxe impactos na diplomacia Brasil-Israel e alimentou narrativas políticas oportunistas.


Referências e Fontes:

1. https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/TreatyBodyExternal/treaty.aspx, consultado em 06/01/2024.

2. Missão Brasileira para as Nações Unidas.

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