Caso Rainbow Warrior: Uma Análise de Disputas Internacionais – I

Internacionalidade da Disputa como Objeto da Justiça Internacional: O que é disputa internacional?

Introdução

A concepção de Justiça Internacional está ligada ao conceito de disputa internacional. Por isso, a apreensão apropriada do conceito de Justiça Internacional depende, preliminarmente, do entendimento de disputa internacional, já que Justiça Internacional tem por objeto a disputa internacional; porém, como veremos, nem toda disputa judicial é objeto da Justiça Internacional, podendo ser adjudicada pelas cortes domésticas.

Um dos objetivos é demonstrar que disputa internacional e julgamento internacional (jurisdição internacional) não são conceitos sincrônicos. A Justiça Doméstica e a Justiça Internacional compartilham do julgamennto das disputas internacionais (que lhes é um objeto comum); contudo, a Justiça Internacional, sendo mais estrita, não tem jurisdição sobre as disputas domésticas, apenas sobre as disputas internacionais. Embora os temas pareçam demasiadamente abstratos para serem concretamente úteis, a exposição deles é finalístico, à medida que servem de base para o objetivo maior: Entendimento do que é a Justiça Internacional como instrumento do Direito Internacional.

Em um segundo momento, avança-se para as acepções objetiva, subjetiva e instrumental de Justiça Internacional, que são perspectivas pelas quais a Justiça Internacional pode ser compreendida no seu sentido estrito.

Consequentemente, é necessário abordar-se a concepção de Justiça Internacional no sentido estrito, com base na qual se extrai aquela tríplice acepção de Justiça Internacional, e Justiça Internacional no sentido amplo, a qual corresponde à ideia vulgar de Justiça Internacional.

Por fim, a advertência de que essa discussão em torno do conceito de Justiça Internacional, a partir da orientação dos cursos correlatos ao tema da Universidade de Londres, e que se desdobra em quatro posts, não tem objetivo de pesquisa doutrinária, mas se destina, unicamente, a incentivar o interesse pelo estudo do Direito Internacional.

Disputa (ou Conflito de Interesses). Litígio

Em termos simples, a disputa é, coerentemente com sua origem latina, uma ruptura da concordância sobre alguma coisa a respeito da qual não havia controvérsia. Na verdade, não existe diferença entre disputa (de largo uso no direito internacional) com conflito de interesses (mais ao gosto da doutrina processual brasileira), reservado o termo litígio para se referir, especificamente, à disputa já submetida à adjudicação judicial ou arbitral.

Elementos da Disputa

A disputa pressupõe, logicamente, no mínimo duas pessoas (naturais ou jurídicas, governamentais, mistas ou puramente privadas) que se vinculam pela divergência sobre algum bem (material ou não), daí porque se dividirem a conceito de disputa em três elementos: O subjetivo (os sujeitos que divergem), o objetivo (o objeto da divergência) e o jurídico (vínculo da divergência).

Diante da ocorrência de uma disputa, ou conflito de interesses, espera-se que a paz seja restabelecida através da autocomposição, ou seja, que as próprias partes cheguem a um acordo e passem, assim, a ter concordância sobre o objeto da disputa, qualquer que seja ele, de modo que o vínculo da divergência seja dissolvido por aquela autocomposição, que pode se dar uma por renúncia, aceitação, resignação, submissão, transação ou qualquer outro método pacífico e admitido pelo direito.

Fases da Submissão Amigável e da Adjudicação

A permanência do vínculo da divergência em si mesmo não é um problema. A disputa só requer atenção se ela se tensiona, evoluindo para o estágio da ameaça de agressão, assim entendida toda e qualquer forma de imposição pela força de uma solução de conflito entre as partes conflitantes. Ou seja, a disputa se agrava e se aproxima de um ponto em que os envolvidos podem entrar em um confronto. Nesse momento, entram em ação os mecanismos legais de contenção para manutenção da paz, que trilham para a fase da submissão amigável, isto é, a disputa é submetida a um meio negociado de solução com a intervenção amigável de um terceiro (mediação, por exemplo) ou, então, segue-se para a fase da resolução por adjudicação, que pode ser alternativa à submissão amigável ou subsequente, caso aquela falhe.

Ora, no plano do direito internacional, aquela submissão amigável corresponde, na disputa entre Estados, aos canais diplomáticos que estabelecem a mediação, a inquirição, a conciliação e os bons ofícios, entre outros possíveis, conforme o artigo 33 (1), da Carta de São Francisco de 1945. Negociação não é uma modalidade de submissão de disputa, porque se realiza diretamente entre os disputantes sem a cooperação de um terceiro que os auxilia, tais como um mediador ou conciliador.

 A adjudicação é a solução da disputa mediante resolução por decisão de um terceiro (adjudicador), que pode ser uma Corte ou Tribunal Judicial ou Arbitral. Aqui, adjudicação é referida, portanto, em termos genéricos, abrangendo, então, os métodos de solução impostos aos disputadores, que são obrigados a aceitar a decisão resolutória do conflito. Contudo, no direito internacional, a imposição da adjudicação depende do consentimento dos disputantes (fig. acima) não podendo ser imposta, salvo raríssimas situações em que Tribunais Penais são instituídos por Resolução do Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, o Tribunal Penal para a Antiga Iugoslávia.

No plano do direito internacional, a adjudicação (julgamento da disputa por um tribunal ou corte internacional) depende da preexistência de um “contrato” ou “acordo” pelo qual os disputantes aceitam ou consentem com a jurisdição como método de resolução obrigatória da disputa, ou seja, de um acordo, tratado ou convenção, de modo que o poder jurisdicional internacional decorre da vontade expressa pelo “pacta sunt servanda”1, enquanto a adjudicação nos sistemas judiciários domésticos do Estado repousa no próprio poder soberano do Estado sobre seus nacionais, prescindindo da anuência destes para se impor. Então, o princípio da santidade dos acordos internacionais é de onde a adjudicação tira a sua força. No plano do Direito Internacional, na adjudicação (julgamento ou jurisdição das disputas) a soberania2 3 4(princípio da jurisdição doméstica) é substituída pelo consentimento (princípio da jurisdição internacional).

Internacionalidade da Disputa

O conceito de disputa até aqui discutido é neutro, i.e., válido para a ideia de jurisdição/adjudicação doméstica e jurisdição/adjudicação internacional indiferentemente. Todavia, é necessário se conceituar a internacionalidade da disputa que a estrema da disputa nacional no âmbito do direito doméstico e a caracteriza como objeto da Justiça Internacional.

O que caracteriza uma disputa internacional? Serem os disputantes de diferentes nacionalidades?

Analisemos a internacionalidade em face, primeiramente, do caso Rainbow Warrior (entre Nova Zelândia e França).

O Caso Rainbow Warrior

Em 10 de Julho de 1985, agentes franceses entraram ilegalmente na Nova Zelândia e explodiram, por ordem do Governo francês, uma embarcação, o Rainbow Warrior, operada pelo grupo ativista ambiental Greenpeace, que se encontrava atracada no Porto de Auckland. Além da destruição da embarcação, o atentado causou a morte do fotógrafo português Fernando Pereira.

Antes que os agentes secretos franceses pudessem fugir, foram presos pelas autoridades locais e identificados, Major Mafart e Capitão Prieur. O Governo francês admitiu a missão oficial de seus agentes. Estava formado o escândalo no centro do qual emergiam duas disputas no primeiro plano e uma terceira no plano de fundo: (a) Nova Zelândia e França; (b) Nova Zelândia e Major Mafart e Capitão Prieur e (c) organização Greenpeace e França. As três disputas têm por objeto as condutas invasivas dos agentes franceses no território neozelandês e os danos pessoais, materiais e morais consequentes da explosão do Rainbow Warrior.

As disputas (a), (b) e (c) têm natureza internacional?


  1. Uma leitura adicional sobre a “santidade dos contratos” ou “pacta sunt servanda” no Direito Internacional, com abordagem mais filosófica: Wehberg, Hans. “Pacta Sunt Servanda.” The American Journal of International Law, vol. 53, no. 4, 1959, pp. 775–86. JSTOR, https://doi.org/10.2307/2195750. Accessed 29 June 2024. ↩︎
  2. Para uma leitura sobre a concepção filosófica do direito sobre soberania: Maritain, Jacques. “The Concept of Sovereignty.” The American Political Science Review, vol. 44, no. 2, 1950, pp. 343–57. JSTOR, https://doi.org/10.2307/1950275. Accessed 29 June 2024. ↩︎
  3. Nessa pesquisa, Jack Goldsmith faz uma abordagem mais positiva de Soberania e a modificação de sua concepção após a Segunda Guerra Mundial: Goldsmith, Jack. “Sovereignty, International Relations Theory, and International Law.” Stanford Law Review, vol. 52, no. 4, 2000, pp. 959–86. JSTOR, https://doi.org/10.2307/1229436. Accessed 29 June 2024. ↩︎
  4. Anél Ferreira-Snyman faz uma abordagem da Soberania como um Poder que tem se transformado para dar lugar a um direito de ordem mundial, que surge, justamente, pela redução da força ou do espectro da autoridade clássica do Estado: Ferreira-Snyman, Anél. “Sovereignty and the Changing Nature of Public International Law: Towards a World Law?” The Comparative and International Law Journal of Southern Africa, vol. 40, no. 3, 2007, pp. 395–424. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/23252645. Accessed 29 June 2024. ↩︎
Related Posts

Comments

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *