Crime Inocente e a Expectativa Legal do Mal

Os intrigantes dados do caso Juiz Sir Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield

Na semana passada, fervilhou nos meios jurídicos, psicológicos e psiquiátricos o caso “de cinema para Fellini filmar” do Juiz aposentado, Sir Edward (Sr. José Eduardo de nascimento) que, por mais de quarenta cinco anos, “enganou” instituições respeitáveis (tais como a USP e o TJSP), apresentando-se como Sir Edward Albert, um inglês radicado no Brasil, filho de nobres britânicos, a partir de uma identidade com dados falsos que José Eduardo conseguiu tirar em 19/09/1980.

Entre pessoas mais próximas, Sir Edward Albert/José Eduardo explicava que, aos 25 anos, veio ao Brasil por causa de um amor (malsucedido) com uma baiana, resolvendo daí permanecer no país, onde cursou Direito na Faculdade de elite (do Largo de São Francisco) da Universidade de São Paulo (1988-1992) e, em 1995, passou no rigorosíssimo concurso da magistratura de São Paulo.

A fraude foi descoberta quando o Juiz aposentado esteve no Poupatempo da Sé/SP em 03/10/2024 para tirar a segunda via do RG nº 15.275.808-2 de Edward Albert, quando se descobriu que ele era, na verdade, José Eduardo (67), a partir do confronto de suas impressões digitais colhidas e que coincidiam com as existentes digitalizadas no sistema como sendo de José Eduardo (colhidas em 1973). Concluída uma investigação policial, o magistrado aposentado foi denunciado à 29ª Vara Criminal Central em 27/02/2025.

Na imprensa, logo se agitaram a trajetória judicial de José Eduardo ao longo de 23 anos de carreira, iniciada em 1995, enfatizando-se o valor de sua aposentadoria concedida em 2018, a qual, ao fim da semana passada, acabou sendo suspensa administrativamente. 

Não é para tanto

À toda prova, o caso de Sir Edward Albert/José Eduardo é intrigante, interessante e instigante; intrigante porque suscita curiosidades sobre a inteligência de Edward Albert/José Eduardo; interessante porque desencadeia dúvidas sobre as causas, as razões e os fins que levam uma pessoa a ser (Edward) tanto tempo quem ela sabe que não é realmente, ou a não ser (José) tanto tempo quem ela sabe que é realmente… Enfim, instigante do ponto de vista do questionamento da capacidade institucional que tinha o Estado, até então, de saber quem é quem na verdade, reforçando daí a necessidade de se investir cada vez mais nos meios e bancos de dados digitais e informáticos de identificação civil.

Rebatidos os detalhes que tornam os fatos bizarros, notadamente, o fato de que o falso foi cometido por alguém que era um Juiz e, portanto, alguém cuja idoneidade e, sobretudo, identidade, tinha de estar acima de qualquer suspeita, e passou judicando 23 anos insuspeitamente, trata-se de mais um caso exageradamente explorado e, sob certo aspecto, desumanamente.

Em um sistema civil em que pessoas podem mudar de nome, excluir e incluir paternidade, escolher gêneros e, inclusive, casarem-se consigo mesmas e quase se aceitam bem os therians (identificação de humanos com não-humano), a falsidade que Sir Edward Albert/José Eduardo viveu por décadas como estudante de direito de elite e magistrado se situa, simplesmente, em um contexto maior em que há uma paulatina normalização da relativização de tudo, onde pessoas não são o que parecem ou que parecem o que não são.

Prescrita a falsidade documental original, tenho minhas dúvidas se existe reprovabilidade penal na conduta que Sir Edward Albert/José Eduardo levou ao longo das décadas, simplesmente, dizendo ser quem não é, sem que tenha causado danos materiais ou morais a outrem por conta do misterioso motivo que o levou a criar o sugestivo alter ego britânico… A propósito, o Governo do Reino Unido já informou que não existe a pessoa que José Eduardo dizia ser nem aquelas de quem ele dizia ser descendente de.

Quid juris?

O Direito Penal cria algumas figuras típicas cuja punibilidade não resulta apenas da tipicidade e da antijuridicidade, mas que dependem também de um juízo de valor, a reprovabilidade, que corresponde àquela carga de desvalor social sobre a conduta que, sendo típica e antijurídica, também ofende os valores sociais com gravidade.

Ora, a pessoa que falsificou a data de nascimento na identidade escolar para poder ir ao cinema ver um filme fora de sua faixa etária é um criminoso? Um vendedor que superestima o valor de uma coisa para induzir a erro o comprador incauto é um criminoso?

Nesses fatos, temos o que se chama de crime inocente e ele existe quando o Direito Penal, tornando uma conduta típica e antijurídica, considera que ela será também, a princípio, reprovável a partir da expectativa legal do mal que ela pode causar. Todavia, na prática, aquele mal em perspectiva legal nem sempre existe e, pelo contrário, verifica-se que houve inocência, erro juvenil e até humanidade, como era o caso das falsas declarações de homens de boa vontade que registravam como sua prole de terceiro para proteger a mulher e a criança.

O que José Eduardo Franco dos Reis fez em 19/09/1980 foi um crime. Mas esse crime prescreveu e, depois de décadas, o que restou não foi a permanência delitiva, mas a concretização de que, por algum motivo supralegal, José Eduardo Franco dos Reis é mesmo Sir Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, alguém filho de nobres ingleses, que veio ao Brasil por outro motivo igualmente nobre, a paixão por uma baiana.

Então, afora não haver crime, há que se corrigir a questão com equidade: Em uma ação civil retificatória, uma sentença reconhecendo, tornando pública e formalmente legal essa estranha e excepcional situação, retificando-se no assento de nascimento de José Eduardo Franco dos Reis, nesses termos:

“Sir Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, que foi nascido em Águas da Prata, aos 16 de Março de 1958, originalmente registrado como José Eduardo Franco dos Reis, filho biológico de José dos Reis e Vitalina dos Reis, “imaginariamente nascido na Inglaterra como filho de nobres ingleses, Sir Richard Lancelot Canterbury Caterham Wickfield e de Lady Anna Marie Dubois Vincent”.

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