Rapto Internacional ou Posse Indevida de Menor? Direito Internacional Público ou Direito Doméstico?
(…) melhor faria a Justiça portuguesa em ordenar, imediatamente, que o Sr. Rui Fonseca restitua o filho de dez anos à mãe e, para já, embarque no mesmo voo que eles para o Brasil, a fim de cuidar com a Justiça do país de residência habitual do infante das tão graves “situações de perigo” que, na distante Ponte de Lima, pôde o zeloso pai tão prontamente constatar e se prontificar a tratar.
Um polêmico pai em Portugal
Sem nenhuma repercussão no Brasil, mas com ampla cobertura nos noticiários de Portugal, está o caso de um menor de dez anos brasileiro que, vindo a Portugal trazido pela mãe brasileira para um período de férias junto ao pai português, terminadas as férias do menor, o genitor, alegando que convém aos interesses do filho não retornar ao Brasil, dele se apoderou para desespero da mãe, Erica Hecksher.
O tema ganhou dimensão maior porque o referido pai não é um português qualquer, e sim o Sr. Rui Fonseca e Castro, um Juiz demitido da Magistratura Portuguesa por causa da sua ruidosa atitude pública (dita “negacionista”), ao tempo da pandemia do COVID-19, por decisão unânime do plenário do Conselho Superior da Magistratura de Portugal, em Outubro de 2021, a qual foi confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal. O ex-juiz Rui Fonseca e Castro lançou-se, então, à vida política, tendo sido eleito presidente do partido nacionalista de extrema-direita Ergue-te, durante a 8.ª Convenção Nacional, que decorreu em Coimbra, sendo que parte de sua publicidade resulta, justamente, de sua conduta pública atípica.
Convenção de Haia de Rapto Internacional de Crianças e Jurisdição Doméstica
O caso do menino brasileiro tem sido abordado pela imprensa como uma questão de direito internacional privado consistente com a Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (1980-CHACRIC), o que é correto. Contudo, não parece que está bem entendida qual é a função da autoridade central da Convenção de Haia de Rapto Internacional de Crianças, nem como ela se relaciona com a Justiça doméstica.
Desde que a mãe, Erica Hecksher (left-behind parent), está em Portugal e postula perante a autoridade judiciária portuguesa competente, o Juízo do Tribunal de Viana do Castelo, a restituição da posse do filho, não é obrigatória a solução jurídica do problema pela 1980-CHACRIC, no que concerne à compulsória intervenção no caso da autoridade central, muito menos as atribuições administrativas dela se sobrepõem às competências jurisdicionais.
O fato que torna aplicável 1980-CHACRIC é a necessidade de cooperação internacional entre as autoridades judiciárias portuguesas e as autoridades judiciárias, a qual, no caso em comento, não é necessária porque, repita-se, a Srª Erica Hecksher (left-behind parent) está em Portugal e já agiu contra o Sr. Rui Fonseca e Castro, demandando a posse da criança, de modo que cabe, então, à Justiça portuguesa decidir o fato acontecido no seu território (apoderar-se o pai da posse do filho como um ato legítimo ou não), não colocando em causa a responsabilidade parental da mãe, que é um fato do território brasileiro e que pela autoridade judiciária brasileira deve ser solucionado.
Autoridade Central
Um outro equívoco na imprensa que tem dado cobertura ao caso é considerar que a autoridade central instituída na Convenção de Haia de Rapto Internacional de Crianças é a competente para decidir o destino da criança. A autoridade central, criada pela Convenção, tem atribuições apenas administrativas, as quais variam de Estado signatário para Estado Signatário da 1980-CHACRIC. Por exemplo, a autoridade central na Finlândia é dotada de instrumentos de maior proatividade do que a autoridade administrativa norte-americana, que é apática, enquanto a autoridade administrativa australiana costuma ajuizar ações judiciais de ofício para repatriar crianças indevidamente trazidas para a Austrália. De qualquer maneira, em nenhum caso, a autoridade central tem poder judicial, jamais sendo, portanto, considerada uma corte.
Tribunal Judicial de Ponte de Lima, Norte de Portugal
O Tribunal Judicial de Ponte de Lima (para o leitor brasileiro, uma observação: Em Portugal, não existe “Vara”, e sim “Tribunal”, que se usa, grosso modo, indiferentemente, para um Juízo de Primeiro ou Segundo grau, seja ele um órgão colegiado ou singular) não tem atribuição para causas de família, daí porque a Srª Erica Hecksher (left-behind parent) entrou com uma medida cautelar para recuperar a posse do filho na cidade de Viana do Castelo, cujo Tribunal de Comarca tem competência territorial para prover Ponte de Lima com jurisdição de Família.
A posição do Tribunal Judicial de Viana do Castelo
“O Ministério Público teve vista e configura a situação descrita um caso de rapto internacional de criança ao qual é aplicável o regime da Convenção de Haia de 1980, da qual são signatários Portugal e o Brasil” (…) “a competência para intervir na fase inicial, com o objetivo do regresso célere da criança ao Estado da sua residência habitual, pertence à autoridade administrativa, denominada Autoridade Central” (Juíza Ana Paula da Cunha Barreiro)
Haver o Sr. Rui Fonseca e Castro recebido a posse do filho, no aeroporto internacional do Porto, das mãos da genitora, Srª Erica Hecksher (left-behind parent), para que aquele gozasse parte das férias ao lado do pai, e haver o pai recusado devolver à mãe a criança, caracteriza uma abdução por retenção indevida, a qual se enquadra, realmente, no artigo 3º da 1980-CHACRIC:
Artigo 3.º
A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:
a) Tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção;
O que o Sr. Rui Fonseca e Castro fez mesmo é um rapto internacional de criança. Contudo, o fato da retenção se enquadrar na descrição da abdução da 1980-CHACRIC não determina a intervenção das autoridades centrais portuguesa e brasileira, muito menos justifica a Justiça declinar de sua competência como parece ter sido o caso.
Processo de alteração do exercício do poder parental
No Direito de Família Português, à ação de modificação de guarda do Direito Brasileiro corresponde a ação de alteração do exercício do poder parental. Consta que o Sr. Rui Fonseca e Castro teria ajuizado tal medida contra a mãe, e que o tribunal teria se dado por incompetente pelo caráter “internacional” do caso. Porém, a incompetência não resulta da 1980-CHACRIC, em sim da Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças, bem como da própria legislação civil de Portugal.
Processo de promoção e proteção
O processo de promoção e proteção é previsto na Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro, a qual se aplica a qualquer jovem ou criança que se encontre em território português, ainda que um estrangeiro de passagem. Ao que tudo indica, a propósito, o filho da Srª Erica Hecksher é português. O Sr. Rui Fonseca e Castro teria proposto, junto ao Ministério Público, um pedido de proteção a favor do filho contra a Srª Erica Hecksher.
A lei portuguesa considera assim as situações de perigo que justificam a atuação de proteção dos magistrados portugueses:
2 – Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:
a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;
b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;
c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;
d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;
e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;
f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.
h) Tem nacionalidade estrangeira e está acolhida em instituição pública, cooperativa, social ou privada com acordo de cooperação com o Estado, sem autorização de residência em território nacional.
Por óbvio, a competência territorial da Justiça Portuguesa é para salvaguardar a criança vítima daquelas situações de perigo quando as ocorrências se dão no território português; certamente, se as situações de perigo acontecem, ou aconteceram, no território brasileiro, onde reside habitualmente a criança, é para lá que deve se dirigir o Sr. Rui Fonseca, inclusive, para demandar a perda da guarda (responsabilidade parental) da mãe.
O fato da retenção versus o fato da alteração da responsabilidade parental
No caso do filho da Srª Erica Hecksher, existe uma diferença a se estabelecer, especialmente em razão da competência dos tribunais portugueses; de um lado, existe o fato da retenção da criança pelo pai, Sr. Rui Fonseca, acontecida em território português; de outro, o fato da alteração da responsabilidade parental pretendida pelo pai, Sr. Rui Fonseca.
Não existe dúvida de que para processar e julgar o segundo fato, falece completa e irretorquivelmente competência aos tribunais portugueses, de acordo com o Artigo 85.º, do Código Civil Português que, ao tratar do domicílio legal dos menores e dos maiores acompanhados, estabelece que “1. O menor tem domicílio no lugar da residência da família; se ela não existir, tem por domicílio o do progenitor a cuja guarda estiver.”
Nessa esteira, já decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa: “O menor tem domicílio no lugar da residência da família; se ela não existir, tem por domicílio o do progenitor a cuja guarda estiver – (artigo 85º nº 1 do Código Civil. Para o julgamento das providências relativas ao exercício das responsabilidades parentais, é competente o tribunal da residência do menor no momento em que o processo foi instaurado. A acção para alteração das responsabilidades parentais constitui uma acção independente e autónoma em relação à acção onde inicialmente havia sido estabelecida essa regulação. Do artigo 182º da O.T.M. resulta expressamente que se trata de uma nova acção, de uma nova regulação das responsabilidades parentais. Dessa autonomia decorre que não se pode considerar como fixada para ela a competência territorial definida na anterior acção.” (6312/08.8TBCSC-O.L1-8, Ilídio Sacarrão Martins – Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais – Competência Territorial).
Havendo um elemento de fato de internacionalidade, como no caso comentado (o fato da relação parental ter sido estabelecida no território brasileiro), a incompetência dos tribunais portugues é reforçada pela Convenção relativa à Competência, à Lei aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em matéria de Responsabilidade parental e de medidas de Protecção das Crianças, concluída em 19/10/1996, adotada pelo Estado Português, cujo Artigo 5º prescreve que “(1) As autoridades judiciais ou administrativas do Estado-Contratante da residência habitual da criança têm a jurisdição para tomar as medidas dirigidas à proteção da pessoa ou do patrimônio da criança.”
De igual teor, colhe-se o julgamento, também do Tribunal da Relação de Liboa, 550/13.9TMPDL-AL1-2, Relator António Moreira, sobre alteração da regulação das responsabilidades parentais – incompetência internacional – residência do menor.
Consequentemente, o tribunal português se dar por incompetente para analisar a pretensão do Sr. Rui Fonseca se mostra calcada pela correta aplicação do direito doméstico e internacional privado.
Nada obstante, por outro lado, quanto à pretensão da Srª Erica Hecksher (left-behind parent), cuja posse do filho foi arrebatada no território português pelo Sr. Rui Fonseca, a situação é sutilmente diferente à medida que a competência dos tribunais portugueses é patente para definir, especificamente, se aquela posse exercida pelo genitor é justa (ou não), deve ou não ser referendada.
Essa competência, que tem contornos emergenciais ululantes pela própria natureza dos acontecimentos, é uma abordagem que escapa à interpretação do artigo 5.º, n.º 1, da Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças, aprovada, em Portugal, pelo Decreto 52/2008, de 13 de Novembro.
É de clareza solar que o fato do rapto, por ter se dado em Portugal, a Portugal faz caber julgá-lo, porque uma coisa é o tribunal não ter competência internacional para julgar o que acontece no Brasil (e que é alegado pelo Sr. Rui Fonseca em sua ação); outra coisa é o tribunal português não abdicar da competência nacional territorialmente determinada, justamente, pelo local do rapto!
Para além dessa análise, a competência cautelar da Justiça portuguesa invocada pela Srª Erica Hecksher cai no domínio do artigo 11 (1), daquela Convenção, a qual dita que “Em todos os casos de urgência, as autoridades de qualquer Estado-Membro do território onde está localizada a criança ou seu patrimônio têm a jurisdição para tomar quaisquer medidas necessárias de proteção.”
Tanto que o que o Sr Rui Fonseca fez é um crime em Portugal, o que ninguém duvida ser objeto de atenção de sua magistratura criminal!
Conclusão
Pelos elementos de fato que se conhece da estória (triste) da criança de dez anos, filho do Sr. Rui Fonseca e da Srª Erica Hecksher, pode-se ver que não se trata nem de uma disputa de Direito Internacional Privado, muito menos objeto de Justiça Internacional, mas um caso de Justiça Doméstica com aplicação do direito civil de família local de Portugal por suas cortes competentes, no aspecto da cautelaridade do caso.
Quando Juiz, por algumas vezes, deparei-me com casos semelhantes de crianças que, tendo sido entregue pela mãe para passar um tempo com o pai, esse se recusou a restitui-las sob o escólio de protegê-las. Em nenhuma delas, havia prova ictu oculi de que a criança retida estava mesmo sob qualquer perigo com o parente guardião.
Sempre se deve considerar um oportunismo a atitude do genitor que, na confiança e boa-fé do outro, recebe a posse provisória da prole comum e, assumindo a postura de “salvador de ocasião”, assenhoreia-se do filho à socapa.
No caso da Srª Erica Hecksher, que traz o filho do Brasil a Portugal para estar com o pai, aquele oportunismo salta aos olhos e, pelo que sabemos do problema, melhor faria a Justiça portuguesa em ordenar, imediatamente, que o Sr. Rui Fonseca restitua o filho de dez anos à mãe e, para já, embarque no mesmo voo que eles para o Brasil, a fim de cuidar com a Justiça do país de residência habitual do infante das tão graves “situações de perigo” que, na distante Ponte de Lima, pôde o zeloso pai tão prontamente constatar e se prontificar a tratar.