A Experiência do Direito Processual Português
De todos os vinte e sete Estados membros da União Europeia, incluindo-se a própria legislação da União, o Direito de Portugal se destaca de longe por ser o mais codificado e, portanto, sistemático. Há realmente muitos sistemas legais codificados: Código de Processo Civil, Código Civil, Código Penal, Código de Processo Penal, Código da Execução das Penas e Medidas Protetivas, Código do Registo Predial, Código da Estrada, Código do Notariado, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Código dos Contratos Públicos, Código Cooperativo, Código do Imposto sobre Veículos (e tantos outros).
O Código de Processo Civil, por exemplo, é um respeitável diploma legal com mais de mil e cem artigos, um pouco mais que o do Brasil; ambos são sistemas também na pré-adolescência, já que o do Brasil data de 2015, ao passo que o de cá é de 2013, cuja edição foi muito criticada por gerar trabalho, custo e não trazer novidade alguma. Porém, quanto à extensão, o CPC Português não abrange ações que estão previstas no CPC do Brasil, por exemplo, o inventário, que é tratado como um processo especial que fica sob a disciplina de um sistema legal bem especial, a Lei nº 23, 5/3; cá, a propósito, uma diferença bem prática em relação o processo civil brasileiro: O inventário tramita eletronicamente de forma compulsória através do Notário (regime do inventário notarial), exceto em situações excepcionais de interesse de incapaz.
Nada obstante, a sistemática portuguesa se mostra, na realidade, cuidadosa dos direitos, e não uma burocrática “diretoragia”.
Um novo regime da tutela geral da personalidade humana
Nada obstante as críticas dos doutores ao novo CPC Português, o reposicionamento da tutela da personalidade humana, que se encontrava entre os procedimentos de jurisdição voluntária no sistema de 1961, para a categoria dos procedimentos especiais no atual sistema de 2013, visou (Prof. Doutor JOÃO PAULO REMÉDIO MARQUES, Faculdade de Direito de Coimbra):
“(…) alargar o sector normativo da tutela da personalidade humana e a eficácia irradiante dessa tutela, no que respeita às faculdades jurídicas processuais postas ao serviço das pessoas humanas”. [1]
Ademais, foi uma correção da natureza da tutela, já que ela se dava sobre situações cujos fatos subjacentes nunca eram graciosos, mas sempre contenciosos. Ou seja, atende-se agora à lógica processual adversarial.
Escopo da tutela geral da personalidade humana
À luz do ensinamento do renomado professor, o lesante fica sujeito a ser, judicialmente, compelido a um comportamento concreto, de fazer ou não fazer, que atenda à necessidade de proteção da pessoa ofendida, de modo que cesse a conduta ofensiva dos seus direitos.
Esses direitos são os substantivos insculpidos no Código Civil Português, artigo 70 e seguintes. E quais seriam, concretamente, os direitos que, sendo da personalidade humana, podem ser defendidos processualmente através do remédio específico da ação especial portuguesa? O prof. OÃO PAULO REMÉDIO MARQUES enumera:
“Embora o casuísmo seja inabarcável, visa-se, por exemplo, a proibição ou a inibição:
- de acesso a registos de informações ou dados da vida privada;
- de utilização, reprodução ou divulgação abusiva de imagem alheia;
- de publicação não autorizada, de cartas ou outros escritos confidenciais;
- da realização de reunião ou assembleia;
- da publicação de livros, filmes ou outras criações intelectuais lesivas de direito de autor ou contenham graves ofensas à identidade ou à honra;
- da colocação de máquinas ou maquinismos produtores de ruídos, cheiros, fumos, etc.);
- de condutas alegadamente ofensivas da honra, bom nome ou reputação (v.g., proibir que o demandado se aproxime a menos de X metros do autor ou de certo local, ou a não contactar com o autor;
- de não remeter, por escrito, oralmente ou outra forma, comunicação cujo conteúdo seja injurioso para o autor;
- de não se manifestar em público sobre factos ou circunstâncias íntimas ou vexatórias para o autor;
- de ordenar ao demandado para se abster em perturbar a liberdade de determinação e de movimentos do autor e o seu sossego e a tranquilidade, designadamente, cessando de imediatamente os telefonemas e o envio de mensagens ou quaisquer manifestações junto do domicílio daquele15, etc.);
- a cessação de captações sonoras ou audiovisuais;
- a eliminação de registos ou de ficheiros, em linha, fora de linha, materiais ou digitais;
- a cessação da ofensa ao direito moral de autor;
- a apreensão, destruição ou inutilização de imagens ou fotografias ilicitamente captadas;
- a eliminação de cheiros, ruídos ou fumos;”
Tutela da personalidade humana no Direito do Brasil
Quando se olha para os direitos da personalidade descritos nos artigos 11 e seguintes do Código Civil do Brasil, verifica-se que nenhuma diferença existe com a legislação portuguesa. A diferença está apenas no campo processual e assim mesmo é uma diferença apenas aparente, já que o CPC Português, ao contrário do brasileiro, é expresso ao conectar uma tutela processual especial à proteção daqueles direitos da personalidade, o que escapou ao legislador brasileiro.
A ausência de expressa organização processual no CPC brasileiro, todavia, não equivale a negar-se proteção direta aos direitos da personalidade pelos instrumentos processuais gerais, por exemplo, as ações cominatórias, não só esgrimadas contra particulares como também contra, e principalmente contra, o Estado.
Ademais, relevante verificar que o direito comparado é usado em larga escala pelos tribunais, sendo o direito português um excelente paradigma jurídico e cultural.
OXXO no Brasil
É o caso que, hoje, verifica-se no Brasil, onde os Municípios têm expedido, inconsideradamente, alvará de funcionamento para estabelecimentos 24 horas, em diversas esquinas da cidade. Ali, são vendidas bebidas alcoólicas. Em consequência, em tais esquinas, acumulam-se beberrões que, no topo de tudo, ainda promovem disco-dance funk com seus veículos equipados com potentes aparelhos sonoros, madrugada adentro. Os vizinhos de tais estabelecimentos, afora perturbados no sagrado direito da personalidade à paz de espírito, ao descanso e à segurança, nada obstante os impostos municipais que pagam, ainda se deparam com entulhos e garrafas quebradas em seus passeios, expondo sua saúde.
Muitas e muitas vezes, nessas situações, invoca-se o direito de vizinhança e tantas outras vezes, em questões de obras novas ruidosas, até o direito de
posse quando, na realidade, um direito superior, o da personalidade, é que está sendo ofendido.
É o Poder Público que, por ser seu guardião constitucional, deve ser chamado a responder judicialmente, inclusive, com responsabilidade objetiva.
Evidentemente que, em que pese o direito administrativo, é-lhe superior o direito humano e da personalidade, sendo perfeitamente possível uma ação nos Juízos da Fazenda, invocando-se a tutela de proteção ao direito ao descanso, à saúde e à segurança, inclusive, com indenização por danos materiais e morais.
Importunações e Ameaças
De maneira geral, entra na proteção pela tutela dos direitos da personalidade as condutas, tão comum nos dias de hoje, que podem ofender as pessoas por publicações nas ditas redes sociais da rede mundial de computadores, ou abordagens indevidas e ameaças pessoais ou por meios telemáticos, nesse caso, impondo-se ao ofensor medidas de afastamento e abstenção reforçadas por multas e bloqueios de uso de redes sociais.
Conclusão
Verifica-se que, na prática do direito no Brasil, pouco uso se tem feito das ações de tutela dos direitos da personalidade como objeto do pedido judicial cominatório e condenatório.
Esse é um problema resultante do fato de que, no Brasil, a questão do exercício dos direitos liberdades não está bem amadurecida.
Um exemplo pode ilustrar. Certa vez, em casa, recebi uma correspondência de um restaurante da esquina. O dono pedia para que eu (e provavelmente outros vizinhos), fizesse um contato imediato com a Prefeitura de Haia para informar que estávamos “felizes” com seu estabelecimento, o qual se encontrava na iminência de ser multado e fechado, caso não provasse sua “adequação e boa convivência com os moradores de seu entorno”.
Será que, no Brasil, o OXXO tem essa preocupação?
[1] https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=5Iffpeyl8dw%3D&portalid=30