Introdução
De uma maneira geral, todos os conceitos de direito internacional nasceram e floresceram na legislação doméstica dos Estados, especialmente, no Direito Romano, de onde foram transplantados. Um único, porém, é nativo do direito internacional: Os direitos humanos.
Analisando a Convenção da Liga das Nações (28/6/1919), antecessora da ONU, verificamos que a palavra “humana” foi ali empregada uma só vez; porém, já na Carta de São Francisco (24/10/1945), ela aparece 10 vezes. O que causou essa mudança: Os horrores da Segunda Guerra de 1939/1945. Então, em 10/12/1948, veio a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que serviu de inspiração para a Convenção Europeia de Direitos Humanos com escopo territorial mais restrito, a Europa (4/11/1950). Um pouco antes, em 2 de Maio de 1948, adotou-se a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, a qual integra o Sistema Inter-Americano de Proteção de Direitos Humanos.
A Europa é o epicentro dos Direitos Humanos, com sensíveis reflexos para o Oeste, mas cujos efeitos vão sendo menos sentidos à medida que se viaja para o Leste.
A África um Continente gigante, com 55 países (um deles não reconhecido pela ONU, a República Sahrawi (República Árabe Saaraui Democrática), onde existe o mais jovem mecanismo regional de Direitos Humanos, tendo sido a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos adotada em 1/6/1981. As nações africanas, por questões geográficas e culturais, são próximas da Europa, mais do que o Continente Americano, e por sua influência tem avançado nos Direitos Humanos.
Não podemos dizer o mesmo do Oriente Médio e do Extremo Oriente, onde fatores culturais e a distância ditam diferenças que não permitiram uma maior influência europeia no campo dos Direitos Humanos, notadamente, pela maneira que aquelas nações, por questões culturais, relacionam-se com a mulher, com a família, com o trabalho, com o Estado e, finalmente, a Religião e a Ética.
Hoje, vendo os conflitos no Oriente Médio, notadamente, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, não tem como não concluir que foi ruinosa a intervenção europeia de franceses (região da Síria) e de ingleses no Oriente Médio (região da Jordânia).
O Extremo Oriente, no ano de 2012, a ONU acompanhou a redação do primeiro documento internacional de Direitos Humanos no Sudeste Asiático pela Associação Asiática de Nações (ASEAN). Porém, o “rascunho” não estava de acordo com a Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena de 1993, a qual não é uma lei internacional, mas serve de diretriz para a criação do direito internacional regional em matéria de direitos humanos. De qualquer modo, em 19/11/2012, foi adotada a ASEAN Declaração de Direitos Humanos. Observa-se quanto anos de diferença das declarações ocidentais! Assim mesmo, a China não participa daquela entidade intergovernamental.
A China tem relativo engajamento na legislação de direitos humanos produzida pelo ONU, portanto, de natureza global, não regional; porém, o Governo chinês não é permeável aos mecanismos judiciais ou quase-judiciais de controle de infrações aos direitos humanos. Essa é a situação da Rússia.
Aumento do Escopo da Jurisdição Humanitária Internacional
O Direito Humano Internacional foi arquitetado no Pós-Segunda Guerra Mundial tendo em vista os Governos e seus abusos contra seus próprios nacionais. É o caso, por exemplo, da Convenção de Refugiados de 1951 (28/7).
Quanto ao Poder Judiciário, sua omissão em salvaguardar os direitos humanos em face de ditadores de todo o tipo era o ponto principal da relação entre a Justiça doméstica e a Justiça Internacional de Direitos Humanos.
Nos últimos trinta anos, porém, a partir da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, uma nova vertente se abriu na relação das Justiças dos Estados (membros da Conselho da Europa, no caso, 46 Estados) com aquela Corte, a qual passou a rever o mérito de como os juízes interpretam o direito, no sentido de sua falta de humanidade.
Aquela jurisprudência tem influenciado a Corte Inter-Americana de Direitos Humanos, a qual tem jurisdição sobre o Brasil.
ERROS MÉDICOS e HOSPITALARES
Pode ser mencionado, por exemplo, o Caso nº 12.242 (pdf abaixo), de Março de 2024, que envolve a Clínica Pediátrica da Região Dos Lagos, Rio de Janeiro, Brasil, em que as vítimas são os parentes de 96 bebês que, em 1996 e 1997, teriam falecido por causa de negligência médica naquela nosocômio. No sistema judicial doméstico do Brasil, não houve condenação criminal nem responsabilidade civil de ninguém, o que tem sido considerado uma falta de respeito aos direitos humanos das pessoas cujos bebês morreram por negligência e a Justiça brasileira deixou aquelas pessoas desamparadas. A Corte Inter-Americana de Direitos Humanos não vai entrar no mérito se houve, de fato, erro médico ou hospitalar, negligência das autoridades persecutórias ou judiciais, mas a situação objetiva dos familiares das crianças que ficaram sem resposta alguma do Estado brasileiro que, então, teria falhado por se incapaz dar àquelas pessoas uma resposta (convincente) ao que lhes aconteceu.
Evidentemente, haver tantas mortes em tão curto espaço de tempo torna o caso emblemático; todavia, a Justiça Internacional de Direitos Humanos também atua em casos simples e individuais quando as instâncias judiciais nacionais falham.
Por exemplo, o caso de uma venezuelana, iniciado na Corte Inter-Americana (em 2021) e que foi julgado em 2023, versa sobre a responsabilidade internacional do Estado “pela violação de garantias e proteção judicial em detrimento da senhora Balbina Francisca Rodríguez Pacheco, devido à suposta falta de investigação diligente e reparação adequada por supostos atos de negligência médica que teriam sido cometidos em uma clínica privada após sua cesariana”. (sentença em pdf abaixo)
No caso da mulher venezuelana e dos parentes dos bebês brasileiros, o que está na liça é a responsabilidade internacional pública do Estado da Venezuela e do Brasil, respectivamente, com o compromisso humanitário que assumiram e que deixaram de cumprir pela deficiência de seu sistema judiciário.
VIOLÊNCIA POLICIAL
Em 27 de Novembro de 2023, o Brasil foi condenado pela Corte Inter-Americana de Direitos Humanos no caso que, em São Paulo, ficou conhecido como o Massacre da Castelinho, quando doze pessoas que viajavam em um ônibus foram executadas por policiais militares, a qual foi divulgada pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. (sentença em pdf abaixo)
Ainda em 2024, o Brasil foi mais uma vez condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual reconheceu a responsabilidade internacionalmente pelo uso desproporcional da força empregada pela Polícia Militar, durante uma marcha pela reforma agrária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Campo Largo, no Estado do Pananá, em 2 de maio de 2000, tendo sido morto o trabalhador rural Antonio Tavares Pereira (O Ministerio Dos Direitos Humanos e Cidadania tem publicado algumas das condenações do Governo brasileiro aqui).
ARQUIVAMENTO INDEVIDO DE INVESTIGAÇÃO
Na jurisprudência da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos, encontram-se diversos julgados em que são identificadas situações consideradas “corriqueiras” e “individuais, por exemplo, o arquivamento de um inquérito que deixou uma família sem solução pela morte ou desparecimento de alguém de sua família. Nesse sentido,
A Corte considera que os órgãos estatais encarregados da investigação relacionada com a morte violenta de uma pessoa, cujo objetivo é a determinação dos fatos, a identificação dos responsáveis e sua possível sanção, devem realizar sua tarefa de forma diligente e exaustiva. O bem jurídico sobre o qual recai a investigação obriga a redobrar esforços nas medidas que devam ser praticadas para cumprir seu objetivo. A atuação omissa ou negligente dos órgãos estatais não resulta compatível com as obrigações emanadas da Convenção Americana, com maior razão quando se está em jogo um dos bens essenciais da pessoa. (documento em pdf abaixo)
DECISÃO JUDICIAL DESUMANA
Mas, foi recentemente que se tornou pública aquela que, de todos os julgamentos internacionais de Tribunal de Direitos Humanos, mais me impressionou pelo seu “refinamento”. Não foi um julgamento da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos, mas da Corte Europeia de Direitos Humanos que reconheceu a desumanidade de uma decisão da Justiça Portuguesa em um caso que, por sua simplicidade e humildade, chega a ser emocionante.
Em 2012, uma senhora portuguesa deixou uma procuração dando poderes para que a filha mais nova gerisse a sua vida, caso perdesse a capacidade de fazê-lo por si mesma. Em 2014, quando se verifiou aquela perda de capacidade, Teresa Silva ficou perplexa ao ver que oito juízes de tribunais portugueses: Um do Tribunal de Primeira Instância, três da Relação de Lisboa e mais quatro do Supremo Tribunal de Justiça. Todos encontram razões jurídicas para desatender a vontade da anciã, determinando que a administração da vida dela caberia ao filho mais velho.
A decisão da Quarta Secção do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, aplicando o artigo 8º da Convenção, considerou desumano o Estado Português desrespeitar a vida privada e familiar das pessoas, aplicando uma lei que contrariava a vontade consciente de uma pessoa dispor sobre si mesma, sobre quem gostaria de ser colocada sob tutela, sua filha mais nova, Teresa Silva.
Pela falta de humanidade de sua Justiça na fria aplicação do texto literal da lei, o Estado Português foi condenado por sua falta de equidade a pagar 5.200 Euros de danos morais e sucumbência de 2.230 Euros. (sentença em pdf abaixo)
Visto que a Corte Inter-Americana de Direitos Humanos se alinha aos entendimentos da Corte Europeia, não deve tardar julgamentos semelhantes no Continente Americano.