Corte Internacional de Justiça considera Ilegal Prisão de Agentes com Imunidade Internacional


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Introdução

A prisão preventiva determinada pelo Tribunal Internacional Penal em face do Presidente da Rússia, Vladimir Putin (Março de 2023) e, agora, em Novembro de 2024, contra o Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, contraria os compromissos dos Estados aderentes do Estatuto de Roma à prévia aceitação desses mesmos Estados à Carta das Nações Unidas. 

Assim, no conflito entre a exigência de cooperação fundada no art. 27, §§ 1º e 2º, do Estatuto de Roma e a determinação emergente do artigo 2º § 7º, da Carta da Organização das Nações Unidas, essa deve prevalecer por força do princípio da anterioridade e santidade dos contratos internacionais.

Artigo 27.º
Irrelevância de cargo oficial
1. Este Estatuto aplicar-se-á igualmente a todas as pessoas, sem qualquer distinção baseada em cargo. Em particular, a qualidade oficial como Chefe de Estado ou de Governo, membro de um governo ou parlamento, um representante eleito ou um funcionário do governo deverá em nenhum caso isentar uma pessoa de responsabilidade criminal nos termos deste Estatuto, nem deverá, por si só, constituir motivo para redução da pena. 2. Imunidades ou regras processuais especiais que possam estar associadas à qualidade oficial do uma pessoa, seja ao abrigo do direito nacional ou internacional, não impedirá o Tribunal de exercendo sua jurisdição sobre tal pessoa.

artigo 2º § 7º

“Nada contido na presente Carta deverá autorizar as Nações Unidas a intervir em matérias que estão essencialmente na jurisdição doméstica de qualquer Estado ou EXIGIRÁ DOS MEMBROS SUBMETER TAIS MATÉRIAS AO JULGAMENTO SOB A PRESENTE CARTA; mas esse princípio não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas sob o Capítulo Vll”.

De certo, o artigo 27 e seus §§ se aplicam aos 124 Estados aderentes ao Estatuto de Roma, de modo que, por força de sua aceitação, renunciaram ao artigo 2º, § 7º, da Carta da ONU; consequentemente, seus agentes políticos mandatários de funções representativas da Soberania não têm imunidade subjetiva jurisdicional. Porém, os Estados não signatários do Estatuto de Roma não aceitaram essa renúncia, daí porque a obrigação de cooperação dos Estados aderentes não pode ser exercida contra os agentes políticos mandatários de Soberanias não-aderentes, por exemplo, China, Israel, Estados Unidos, Rússia, Índia e outros sessenta e cinco Estados.

Em outro giro de palavras, a obrigação de cooperação contida na Parte 9 do Estatuto se aplica, no que toca ao art. 27, §§ 1º e 2º, aos próprios Estados aderentes, mas não pode aquele dispositivo, por força da obrigação de cooperação, ser por esses estendidos aos Estados não-aderentes, que estão abrigados pelo artigo 2º, § 7º, da Carta da ONU.

Jurisdição Universal

No julgamento levado a efeito pela Corte Internacional de Justiça, principal entidade judicial da ONU, no caso do Mandado de Prisão de 11 de Abril de 2000 (Democrática República do Congo v. Reino da Bélgica), o fundamento da prisão expedida pela corte criminal doméstica belga contra o Ministro congolês fundava-se em jurisdição universal adotada pela legislação doméstica belga. 

Relevante apontar que, com o advento do Tribunal Internacional Penal, seus Estados aderentes, através da obrigação de cooperação da Parte 9 do seu Estatuto, constituem a legalização de uma jurisdição universal processual, pela qual os Estados cumprem as ordens processuais penais da TIP, inclusive, ordens de prisão e entrega de presos para julgamento ou execução (de pena) daquela corte. 

A Corte Internacional de Justiça, em 2000, portanto, enfrentou a mesma natureza de jurisdição em que se funda a Corte Internacional Penal em sua atuação sobre os indivíduos que processa nos dias de hoje. Consequentemente, é atual e pertinente às prisões preventivas contra Putin e Netanyahu.

Jurisdições Independentes

É conveniente também afirmar que não existe hierarquia entre a Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Internacional Penal, até porque esse tem jurisdição penal sobre indivíduos e aquele tem jurisdição de direito público sobre Estados. Contudo, todos os Estados que são signatários do Estatuto da CIJ admitem e aceitam a  jurisdição daquela Corte para julgar qualquer situação de infração de tratado internacional, artigo 36, §2º, “a” até “d”:

Art. 36, § 2º, “a” até “d”

Os Estados Partes no presente Estatuto podem, a qualquer momento, declarar que reconhecem como obrigatória ipso facto e sem acordo especial, em relação a qualquer outro Estado que aceite a mesma obrigação, a jurisdição do Tribunal em todas as disputas legais relativas:

(a) à interpretação de um tratado;

(b) a qualquer questão de direito internacional;

(c) à existência de qualquer fato que, se estabelecido, constituiria uma violação de uma obrigação internacional;

(d) à natureza ou extensão da reparação a ser feita pela violação de uma obrigação internacional. 

Consequentemente, a CIJ pode julgar uma controvérsia entre Estados envolvendo a aplicação do Estatuto de Roma. Essa jurisdição é prevista no artigo 199 do Estatuto de Roma.

Sobreposição de Jurisdições (overlapping)

Importante explicar que a jurisdição da CIJ é sobreposta (overlapping) à do TIP; todavia, no julgamento Estado-Estado, ou mesmo em jurisdição meramente consultiva, a CIJ não apreciaria o mérito de uma decisão criminal do TIP, mas os seus efeitos, nomeadamente, se obrigatórios aos Estados interessados, sejam eles aderentes ou não ao Estatuto de Roma constitutivo do TIP.

Inexistência de Organização Judiciária Internacional

Lembramos sempre que existe, no plano do Direito Internacional, uma Justiça Internacion, mas não um “judiciário internacional”, porquanto os órgãos judiciais supranacionais não estão organizados, nem hierarquicamente estruturados entre si, ao contrário da instituição judicial doméstica dos Estados.

As cortes internacionais são isoladas umas das outras, inclusive, pode haver contradição de seus julgamentos sobre os mesmos fatos, causando fragmentação do direito internacional. Exemplo emblemático está estampado no MOX plant case.

Sumário do Julgamento da Corte Internacional de Justiça

Por sua relevância e pertinência, transcrevo abaixo o sumário oficial do julgamento da Corte Internacional de Justiça sobre o caso do Mandado de Prisão de 11 de abril de 2000 (República Democrática do Congo x Bélgica).

VISÃO GERAL DO CASO

Em 17 de outubro de 2000, a República Democrática do Congo (RDC) entrou com um requerimento, instaurando um processo contra a Bélgica. O caso é referente a uma disputa sobre um mandado de prisão internacional, emitido em 11 de abril de 2000, por um juiz de instrução belga contra o Ministro das Relações Exteriores congolês em exercício, Sr. Abdoulaye Yerodia Ndombasi, buscando sua detenção e subsequente extradição para a Bélgica por supostos crimes que constituem “graves violações do direito internacional humanitário”.

O mandado de prisão foi transmitido a todos os Estados, incluindo a RDC, que o recebeu em 12 de julho de 2000. A RDC também entrou com um pedido para a indicação de uma medida provisória buscando “uma ordem para a imediata baixa do mandado de prisão contestado”.

A Bélgica, por sua vez, solicitou que esse pedido fosse rejeitado e que o caso fosse removido da Lista. Em sua Ordem, feita em 8 de dezembro de 2000, o Tribunal, rejeitando o pedido da Bélgica para que o caso fosse removido da Lista, declarou que “as circunstâncias, como [então] se apresentaram ao Tribunal, [não eram] tais que exigissem o exercício de seu poder, sob o Artigo 41 do Estatuto, para indicar medidas provisórias”. O Memorial da RDC foi arquivado dentro dos prazos prescritos.

Por sua vez, a Bélgica arquivou, dentro dos prazos prescritos, um Contra-Memorial abordando questões de jurisdição e admissibilidade e os méritos.

Em suas alegações apresentadas nas audiências públicas, a RDC solicitou ao Tribunal que julgasse e declarasse que a Bélgica havia violado a regra do direito internacional consuetudinário, referente à inviolabilidade e imunidade de processo criminal de ministros estrangeiros em exercício e que deveria ser obrigada a revogar e cancelar esse mandado de prisão e fornecer reparação pelo dano moral à RDC.

A Bélgica levantou objeções relacionadas à jurisdição, irrelevância e admissibilidade.

Em seu Julgamento de 14 de fevereiro de 2002, o Tribunal rejeitou as objeções levantadas pela Bélgica e declarou que tinha jurisdição para apreciar a aplicação da RDC.

Com relação aos méritos, o Tribunal observou que, no caso, eram apenas questões de imunidade de jurisdição criminal e a inviolabilidade de um Ministro de Relações Exteriores (em exercício) que ele tinha que considerar, com base, além disso, no direito internacional consuetudinário.

O Tribunal então observou que, no direito internacional consuetudinário, as imunidades concedidas aos Ministros de Relações Exteriores não são concedidas para seu benefício pessoal, mas para garantir o desempenho efetivo de suas funções em nome de seus respectivos Estados. O Tribunal sustentou que as funções exercidas por um Ministro de Relações Exteriores eram tais que, durante toda a duração de seu cargo, um Ministro de Relações Exteriores, quando no exterior, gozava de total imunidade de jurisdição criminal e inviolabilidade. Na medida em que o propósito dessa imunidade e inviolabilidade era impedir que outro Estado impedisse o Ministro no desempenho de suas funções, nenhuma distinção poderia ser feita entre atos realizados por este último em uma capacidade “oficial” e aqueles alegadamente realizados em uma “capacidade privada” ou, para esse assunto, entre atos realizados antes de assumir o cargo de Ministro das Relações Exteriores e atos cometidos durante o período do cargo.

O Tribunal então observou que, ao contrário dos argumentos da Bélgica, não foi capaz de deduzir de seu exame da prática do Estado que existia, sob o direito internacional consuetudinário, qualquer forma de exceção à regra que concede imunidade de jurisdição criminal e inviolabilidade aos Ministros das Relações Exteriores (em exercício), quando eles eram suspeitos de terem cometido crimes de guerra ou crimes contra a humanidade.

O Tribunal observou, ainda, que as regras que regem a jurisdição dos tribunais nacionais devem ser cuidadosamente distinguidas daquelas que regem as imunidades jurisdicionais. As imunidades, sob o direito internacional consuetudinário, incluindo aquelas dos Ministros das Relações Exteriores, permaneceram oponíveis perante os tribunais de um Estado estrangeiro, mesmo quando esses tribunais exerciam uma jurisdição criminal estendida com base em várias convenções internacionais sobre a prevenção e punição de certos crimes graves.

No entanto, o Tribunal enfatizou que a imunidade de jurisdição desfrutada pelos Ministros das Relações Exteriores em exercício não significava que eles gozavam de impunidade em relação a quaisquer crimes que pudessem ter cometido, independentemente de sua gravidade.

Embora a imunidade jurisdicional fosse de natureza processual, a responsabilidade criminal era uma questão de direito substantivo.

A imunidade jurisdicional poderia muito bem impedir o processo por um certo período ou por certos delitos; não poderia exonerar a pessoa a quem se aplicava de toda responsabilidade criminal.

Após examinar os termos do mandado de prisão de 11 de abril de 2000, o Tribunal observou que a emissão, como tal, do mandado de prisão contestado representava um ato das autoridades judiciais belgas com a intenção de permitir a prisão em território belga de um Ministro de Relações Exteriores em exercício, sob acusações de crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Constatou que, dada a natureza e o propósito do mandado, sua mera emissão constituía uma violação de uma obrigação da Bélgica para com a RDC, na medida em que não havia respeitado a imunidade de que o Sr. Yerodia desfrutava como Ministro de Relações Exteriores em exercício.

O Tribunal também declarou que a circulação internacional do mandado de prisão contestado de junho de 2000 pelas autoridades belgas constituía uma violação de uma obrigação da Bélgica para com a RDC, na medida em que não havia respeitado a imunidade do Ministro de Relações Exteriores em exercício. Finalmente, o Tribunal considerou que suas conclusões constituíam uma forma de satisfação que repararia o dano moral reclamado pela RDC.

No entanto, o Tribunal também decidiu que, para restabelecer “a situação que, com toda a probabilidade, teria existido se [o acto ilegal] não tivesse sido cometido”, a Bélgica deve, por sua própria escolha, cancelar o mandado em questão e, assim, informar as autoridades a quem o mesmo tinha sido distribuído.

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