Introdução
O Ministério da Educação (MEC) autorizou 15 novos cursos de medicina no Brasil em julho de 2024, o que supera todas as autorizações referentes a 2023. A providência é contraditória com a (MEC) Portaria nº 1.771/2023:
“A norma é destinada às instituições vinculadas ao sistema federal de educação superior e os pedidos serão analisados pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) do Ministério da Educação (MEC). A Portaria expressa a preocupação do MEC em assegurar a qualidade da formação médica no Brasil.”
Em 2020, o Brasil contava com 357 escolas médicas que, juntas, ofereciam 37.823 vagas de graduação. No mesmo ano, o país registrava a marca inédita de meio milhão de médicos ou 2,4 médicos por mil habitantes; em 2022, o Brasil contava com 389 escolas médicas que, juntas, ofereciam 41.805 vagas de graduação. Em dez anos, é previsto que o Brasil estará no patamar de um milhão de médicos1.
Considerando haver, em 2024, 211 milhões de habitantes no Brasil, aquela expansão de graduação médica não seria nada mau. Porém, a experiência demonstra que o aumento na capacidade de graduação médica se dá na proporção inversa a do aumento da capacitação médica. Sendo a assistência à saúde um direito fundamental do ser humano, o Estado é o responsável por sua implantação e eficácia. Consequentemente, ocorrendo lesões decorrentes da prestação do serviço de assistência à saúde, especificamente, o erro médico (lato senso), verifica-se que emerge a responsabilidade civil do Poder Público.
Nesse primeiro post, faremos uma abordagem do erro médico na assistência médica à saúde do Brasil, observando a distinção entre o sistema público e o delegado (privado) e a respectiva responsabilidade civil do Estado, tanto em uma como em outra.
Saúde
A saúde compreende a higidez física e mental que permitem ao indivíduo viver, se desenvolver com independência e se realizar individualmente no meio social amparado pelo Estado e dirigido pelo Governo. A saúde é um bem jurídico elementar, universal, personalíssimo, inalienável e imprescritível cuja importância se compara apenas ao direito à liberdade (física, mental e de opinião).
A vida em sociedade traz restrições legais aos indivíduos e, em contrapartida, a garantia de que alguns direitos fundamentais lhes estão assegurados. A saúde é, sob esse aspecto, então, um direito fundamental compensatório em face da submissão às condições de uma vida em sociedade.
Em casos extremos, o Estado pode, dentro dos critérios legais, punir os indivíduos infratores dos preceitos sociais mais elementares com a supressão (permanente ou temporária) de parte do direito à liberdade (prisão) e até da vida (pena de morte). Mais modernamente, também a supressão parcial da saúde tem sido usada vicariantemente à supressão parcial da liberdade, por exemplo, nas hipóteses de castração química de predadores sexuais em substituição à prisão perpétua ou de longa duração.
Assistência Médica
Empiricamente, sabe-se que a saúde, enquanto status individual, consubstancia-se por condições negativas, vale dizer, quando ausentes fatores de restrição física e emocional, as quais são experienciadas pela presença de sintomas de doenças, perturbações e dores degenerantes do equilíbrio físico-mental individual.
Assistência médica, então, é o direito que emerge da situação em que a saúde, por algum motivo e sob qualquer de seus múltiplos aspectos, está comprometida, sendo, portanto, o direito à restauração da saúde.
Assim, enquanto a saúde pressupõe um estado de higidez que o indivíduo tem, a assistência médica é precondicionada pelo estado de higidez que o indivíduo não tem ou que perdeu. Ambas, direito à saúde e à assistência médica, são faces de um mesmo direito individual e cujo exercício é primariamente, contra o Estado que abriga a sociedade onde o indivíduo está integrado.
Constituição Federal Brasileira
A Constituição Federal do Brasil, a exemplo de dezenas outras ao redor do mundo, está alinhada com a Carta Universal dos Direitos Humanos, visto que assegura a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República (art. 1º, III), tem por objetivo republicano erradicar a probreza (art. 2º, III) e, ainda, é uma República que, no plano do Direito Internacional, submete-se à regência dos Direitos Humanos, conforme artigo 4º, inc. II.
Modelo Brasileiro de Assistência à Saúde: Sistema Público de Saúde e Sistema Delegado de Saúde
A Constituição Federal atribui ao Poder Público a responsabilidade pelo serviço de assistência a saúde:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (…) II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
Por disposição do art. 196, da Const. Federal, então, o serviço de assistência médica é sempre público no sentido de que é uma obrigação do Poder Público. Porém, a sua execução se divide em público e delegado, sendo aquele representado pelo Sistema Único de Saúde (previsto no art. 197), organizado pela União com parcerias com Estados, Municípios e parcerias com entidades privadas. Paralelamente ao sistema público de assistência à saúde, há o sistema delegado de saúde, pelo qual o serviço de assistência à saúde é concedido pela União para pessoas juridicas privadas por intermédio de uma autarquia especial, a ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Responsabilidade do Estado no Erro médico (Sistema Público de Saúde)
Verifica-se, outrossim, que existe uma cadeia na constituição e organização do serviço de assistência à saúde.
O ponto mais concreto daquele circuito é onde está o cidadão paciente e o médico, o enfermeiro, o técnico, e o estabelecimento médico-hospitalar, onde se realiza o serviço de assistência médica e, por consequência, também é onde pode se dar o erro médico. Estando aquele ponto mais concreto dentro do SUS, a responsabilidade do Poder Público (União, Estados ou Municípios, conforme o caso, ou mesmo dos três ao mesmo tempo) é tangível, a teor do do tema 793 tirado do leading case RE 855178:
“1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. 2. A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. 3. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Precedente específico: RE 657.718, Rel. Min. Alexandre de Moraes. 4. Embargos de declaração desprovidos.”
Por outro lado, sendo o caso de erro médico ocorrido dentro do modelo do Sistema Delegado, a responsabilidade civil da União é possível, porém, abstrata por ser de difícil constatação prática no plano das provas.
Responsabilidade no Sistema Público. Solidaridade e Objetividade. Legitimidade da Entidade Pública: Lei Federal nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Ilegitimidade do Agente Público (Médico)
No Sistema Público de Saúde (SUS), a responsabilidade do Poder Público tem amparo no art. 37, § 6º da CF/88. Nota-se que esse dispostivo não tem natureza de responsabilidade contratual, e sim aquiliana. Ademais, a responsabilidade do Poder Pública é solidária e objetiva:
“O Supremo Tribunal Federal, em acórdão proferido pelo Plenário, em repercussão geral, decidiu que a responsabilidade civil do Estado, tanto para as condutas comissivas, quanto omissivas, subsume-se à teoria do risco administrativo prevista no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. A responsabilidade civil do Estado configura-se pela conjugação dos requisitos: conduta (omissiva ou comissiva), o nexo de causalidade e o dano efetivo, sendo desnecessária a análise da existência de dolo ou culpa do Estado em relação ao particular” TJDF – 07065259620218070018
Aspecto da maior relevância é observar que o erro na assistência médica na seara do SUS não dependerá de prova de culpa do médico, de modo que a vítima somente precisa provar:
- (a) O fato do serviço (conduta do agente público, sem precisar
provar dolo ou culpa); - (b) O dano sofrido; e,
- (c) O nexo de causalidade entre o fato e o dano.
Da leitura do § 6º do art. 37 da CF/88, é possível perceber que o dispositivo consagrou duas garantias, a saber2:
• a primeira, em favor do particular lesado, considerando que a CF/88 assegura que ele poderá ajuizar ação de indenização contra o Estado, que tem recursos para pagar, sem ter que provar que o agente público agiu
com dolo ou culpa;
• a segunda garantia é em favor do agente público que causou o dano. A parte final do § 6º do art. 37, implicitamente, afirma que a vítima não poderá ajuizar a ação diretamente contra o servidor público que praticou o ato. Este servidor somente pode ser responsabilizado pelo dano se for acionado pelo próprio Estado, em ação regressiva, após o Poder Público já ter ressarcido o ofendido.
Assim, um paciente vítima de erro (médico) no sistema público (SUS) de assistência à saúde, por força do preceito constitucional supramencionado, pode manejar a ação de indenização em face do ente público ao qual é vinculado o agente causador do dano. Posteriormente, o ente público poderá exercer o seu direito de regresso, inclusive na própria esfera administrativa3.
Ente Público e Agente Causador do Dano. Teoria da Dupla Garantia
Note-se: O ente público é a União, o Estado ou o Município, conforme o caso,pois a legitimidade passiva varia. O agente causador do dano é o médico, o qual não deve ser processado ao lado do ente público:
“A respeito da teoria da dupla garantia, o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese, no julgamento do RE 1027633/SP, em sede de repercussão geral: A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. STF. Plenário. RE 1027633/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 14/8/2019 (repercussão geral) (Info 947).”
Importante questão a considerar na assistência médica, ainda no âmbito do Sistema Público de Saúde, é que, ocorrendo uma situação de erro médico, é necessário se ter atenção ao diploma federal consistente na Lei nº 8.080/90, a qual atribui à competência administrativa dos Municípios a contratação de entidades particulares executoras de assistência médica:
“Art. 18. À direção municipal do SUS compete: (Redação dada pela Lei nº 14.572, de 2023) – (…) X – observado o disposto no art. 26 desta Lei, celebrar contratos e convênios com entidades prestadoras de serviços privados de saúde, bem como controlar e avaliar sua execução;”
Nesse caso, a responsabilidade do Poder Público se cinge ao Município, não podendo ser estendida nem ao Estado, nem à União (TJMG-Tribunal AI 0754980-47.2022.8.13.0000) Belo Horizonte.
Realmente, hospitais privados, e respectivos profissionais médicos, integrantes da rede privada (assistência à saúde delegada pela União), podem prestar serviços como credenciados ao SUS (assistência a saúde pública) e, nessa hipótese, por ser do Município a competência para celebrar e controlar a execução de contratos e convênios com entidades privadas prestadores do serviço de assistência à saúde, apenas o Município pode figurar no polo passivo da ação, por força do citado inc. X, do art. 18, da Lei nº 8.080/90. Daí, não devem ser apontados no polo passivo nem o Estado, nem a União, que serão considerados ilegítimos.
Responsabilidade do Estado no Erro médico (Sistema Privado de Saúde)
Como antecipado, havendo um erro no serviço de assistência à saúde no âmbito do sistema delegado (particular), a responsabilidade da União é distante, dependeria de provas de algo erro na cadeia de concessão do serviço a entidade privada por intermérdio da autarquia federal (ANS) ao respectivo plano de saúde.
Nesse caso, é sempre necessário distinguir no dano sofrido pela vítima o nexo de causalidade ao serviço administrativo (colateral) ou, então, à conduta médica propriamente dita. Por exemplo, a perda do prontuário médico do paciente é um erro administrativo da instituição hospitalar, ao passo que o erro de diagnóstico de uma doença é um erro médico.
A importância da diferença é que o erro no serviço de assistência médica de natureza administrativa gera responsabilidade civil objetiva (independe de prova); por outro lado, a responsabilidade civil pelo erro médico é subjetiva (depende de prova).
Ao contrário do que se disse quanto ao erro médico no sistema público, no sistema privado é facultativo dirgir-se a ação contra o agente médico em litisconsórcio passivo. É recomendável não mover a ação contra o médico, evitando-se os contratempos decorrentes da dilataçao subjetiva da jurisdição, sem que a inclusão dele traga qualquer benefício à vítima.
O operador de plano de saúde, no entanto, deve constar no pólo passivo da ação ao lado da entidade hospitar.
A responsabilidade do plano de saúde é solidária e objetiva.
A responsabilidade da entidade hospitalar, porém, não sendo a hipótese já mencionada de erro administrativo (colateralmente médico) depende da prova do erro do agente médico, o que dependerá, como também dito, de prova, já que é uma responsabilidade subjetiva. Nada obstante, provada a culpa médica, a do nosocômio é automática e a da operador de plano de saúde é solidária e objetiva, sem necesside de produção de prova de culpa.
- 14-informe-tecnico-provmed-no-2.pdf e Em 2024, número de mulheres médicas será maior que o de homens pela primeira vez no Brasil, diz pesquisa inédita. Sites acessados em 29/11/2024. ↩︎
- AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. ERRO MÉDICO. DECISÃO QUE EXCLUIU O ESTADO DE ALAGOAS DO POLO PASSIVO DA DEMANDA, POR ENTENDER QUE O PROCEDIMENTO HAVIA SIDO REALIZADO POR MEIO DE CONVÊNIO PARTICULAR. AGRAVO DO MÉDICO PROFISSIONAL AFIRMANDO QUE O PARTO DA PARTE AUTORA FOI REALIZADO POR MEIO DO SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO DE ALAGOAS MANTIDA POR FUNDAMENTO DIVERSO. HOSPITAIS DA REDE PRIVADA CREDENCIADOS AO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA CELEBRAR E CONTROLAR A EXECUÇÃO DE CONTRATOS E CONVÊNIOS COM ENTIDADES PRIVADAS PRESTADORAS DO SERVIÇO DE SAÚDE. ART. 18, X, DA LEI N.º 8.080/90. JURISPRUDÊNCIA DO STJ. ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE DO AGENTE PÚBLICO NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES, SOB O ARGUMENTO DE QUE ESTE NÃO RESPONDE DIRETAMENTE PERANTE A VÍTIMA PREJUDICADA. ACOLHIDA. TEORIA DA DUPLA GARANTIA. ART. 37, § 6º, DA CF/88. PRECEDENTES DO STF. DECISÃO REFORMADA EM PARTE. RECONHECIMENTO DA ILEGITIMIDADE DO AGRAVANTE. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
(TJ-AL – Agravo de Instrumento: 0803989-47.2023.8.02.0000 Maceió, Relator: Des. Paulo Barros da Silva Lima, Data de Julgamento: 10/04/2024, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 11/04/2024)
↩︎ - Quando se trata de dano causado a terceiros, aplica-se a norma do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, em decorrência da qual o Estado responde objetivamente, ou seja, independentemente de culpa ou dolo, mas fica com o direito de regresso contra o agente que causou o dano, desde que este tenha agido com culpa ou dolo. Nesse caso, a reparação do dano pode ser feita na esfera administrativa, desde que a Administração reconheça desde logo a sua responsabilidade e haja entendimento entre as partes quanto ao valor da indenização. Caso contrário, a pessoa que sofreu o dano pode pleitear a sua reparação na esfera judicial, mediante ação proposta contra a pessoa jurídica causadora do dano. Em caso de ser julgada procedente a ação, cabe direito de regresso contra o agente causador do dano. A responsabilidade da pessoa jurídica é objetiva, porque independe de culpa ou dolo, enquanto a do agente público é subjetiva. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, e-book) ↩︎