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Introdução
Essa postagem não tem a pretensão de esgotar o tema de Justiça Internacional relacionado à imunidade material e processual dos Chefes de Estado (ou de Governo).
Na Processualítica do Direito Internacional, o tema em que se funda o ponto-de-vista aqui arguido se liga às objeções preliminares de mérito de jurisdição, justiciabilidade e admissibilidade, sem dúvida, um dos aspectos mais palpitantes no estudo do Direito e Política das Cortes e Tribunais Internacionais.
Raríssimos os casos de Justiça Internacional no sentido estrito (disputa Estado-Estado em instituições jurisdicionais permanentes) onde as questões de forma da jurisdição (pré-mérito) não ocupem a atenção dos julgadores, sobre as quais se debruçam com tanto apego, e talvez com até mais zelo do que dedicam ao próprio mérito da disputa, porque, se no mérito, está em causa o que é justo, na forma está a própria Justiça na perspectiva de sua legitimidade para nos impor o que é justo.
“(…) se no mérito está em causa o que é justo, na forma está a própria Justiça na perspectiva de sua legitimidade para nos impor o que é justo.”
Na Europa, é praticamente uma unanimidade a opinião política aprovando a expedição de mandado de prisão pelo Tribunal Internacional Penal contra o Presidente Putin.
Vejamos a primeira cena da guerra Rússia-Ucrânia assim:
“A Rússia foi fechada no trânsito pela Ucrânia, em consequência do que a Russia jogou seu veículo contra a Ucrânia.”
A Rússia está errada? Sim.
Contudo, a Justiça não se cinge à análise apenas do ato (agressão desproporcional ao erro, no caso, uma disputa de trânsito), mas também a quem julgará o ato: O juiz tem legalmente competência? O juiz é imparcial? O juiz é independente?
Aqui, está o ponto da ilegalidade:
“O Juiz da causa de trânsito tem parte do aluguel de sua residência pago pelo amigo da Ucrânia.”
Esse Juiz pode julgar o erro da Rússia? Não.
Assim, uma análise técnica pré-mérito da guerra Rússia-Ucrânia, à luz dos requisitos formais de justiciabilidade e admissibilidade da jurisdição da Corte Penal, no mínimo, deixa dúvidas.
Enfim, para os ucranianos mortificados pela guerra, ler que é ilegal a ordem de prisão contra Putin soa como lhes roubar uma das últimas réstias de esperança. E isto é muito ruim, e é o mesmo sentimento que tem o palestino – massacrado na Faixa de Gaza por Israel – ao ouvir a mesma ladainha jurídica a também pregar a ilegalidade da ordem de prisão contra Netanyahu.
A verdadeira Justiça não aplica, por mais que se amargue o Julgador, o adágio de que “os fins justificam o meio”.
Nisso tudo a que vemos, o Conselho de Segurança da ONU só tem que aplaudir a Corte Internacional Penal, porque enquanto essa rouba a cena nas guerras, galopando livre e solta, satisfeita da força de ser absoluta e da glória de ser majestosa, na soalheira candente de um mundo em guerra, aquele Conselho prevarica com o cumprimento de uma promessa insculpida na Carta de São Francisco de 1945:
“NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, DETERMINADOS, a salvar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que duas vezes em nossa vida trouxe tristeza indizível à humanidade…”
O fato da prisão ordenada e o escrutínio de sua legalidade
O fato é o ponto de partida de qualquer escrutínio jurídico.
Aqui, o fato não é exatamente a invasão da Ucrânia pela Rússia e ou suas consequências ou desdobramentos, e sim a ordem de prisão em si mesma.
O escrutínio jurídico é a legalidade da emissão pelo Tribunal Internacional Penal de um mandado de prisão contra o Presidente Vladimir Putin.
Aspectos Formais de uma Análise Jurídica
A análise técnica do escrutínio do julgamento passa por dois estágios, o formal e o meritório.
Formalmente, verifica-se se o fato é apto a ser julgado por uma corte pelos critérios da justiciabilidade e da jurisdicionalidade.
No estágio formal, a análise técnica se orienta na verificação da existência das condições positivas para o julgamento concernentes à competência (ratione materiae, ratione personae), e averiguação das chamadas condições negativas relativas à ausência de impedimentos e suspeições da Corte.
O exame formal do julgamento, portanto, visa a constatar a legitimidade do julgamento.
Transposta a fase formal, então, procede-se ao exame material consistente na verificação da existência de uma razão jurídica fundamentada nos fatos aptos para o julgamento.
Aqui, analisamos os aspectos formais apenas do julgamento da Corte Internacional Penal, não a guerra em si, seus motivos e práticas de combate.
Ausência de Justiciabilidade
A ilegalidade da ordem de prisão contra o presidente russo se prende aos aspectos formais do julgamento daquela Corte Penal Internacional.
Não existe justiciabilidade nos fatos analisados pela Corte Internacional Penal, porque se trata de eventos de uma guerra em curso, a respeito da qual ainda não há uma definição do órgão máximo em matéria de segurança do mundo, o Conselho de Segurança da ONU.
Uma guerra é um conflito Estado-Estado, diferente de uma comoção interna onde se digladiam Estado-sociedade (grupos de pessoas). Estando em curso o conflito entre as duas soberanias, como pode emergir entre elas uma “disputa”, ainda que no plano humanitário? A disputa é totalmente sobreposta e obnubilada pela guerra. As próprias dificuldades de conhecimento dos eventos no sítio em guerra é um obstáculo intransponível em termos de uma segura cognição processual.
A ordem de Putin para invasão da Ucrânia, certa ou erra, aqui não importa o mérito ainda, partiu do Chefe de Governo do Estado russo, não exatamente do indivíduo Putin, tanto é que é aprovada pelos mecanismos constitucionais do Estado russo e, inclusive, pela maioria da nação. Pertine apontar que, a meio da guerra, Putin venceu as eleições com 88% dos votos! Consequentemente, o flagrante aspecto político do conflito tem de ser tratado pelo órgão internacional competente, o Conselho de Segurança da ONU, e os aspectos residuais legais só competem à Corte Internacional de Justiça. Todos os demais aspectos decorrentes da guerra pressupõem, enquanto em curso o conflito, a ação da ONU, politicamente, e da Corte Internacional de Justiça, juridicamente, porque, como tipo, nesse momento, a guerra resulta de um conflito Estado-Estado, falecendo assim, jurisdição da Corte Penal.
É impossível um julgamento jurídico de uma disputa contextualizada por um conflito político muito maior, que é divisão Leste-Oeste da política internacional.
Tem se evidenciado, lastimavelmente, uma versão contemporânea de Justiça Internacional que se envolve em conflitos políticos, aumentado a tensão mundial. É o que se verificou no Tribunal Arbitral do Mar do Sul da China, com base no qual os Estados Unidos, que nem parte é da Convenção do Mar de 1992, pelos motivos que hoje a China lamenta aderir àquele tratado, sentem-se no direito de patrulhar em mares muito próximas ao continente Chinês.
É por conta, exatamente, desse abuso político das cortes internacionais que, já em 1899, frustou-se o anseio da criação de um tribunal de justiça internacional.
A Corte Internacional Penal é uma organização intergovernamental ocidental, compromissada com a União Europeia, a julgar guerras que envolvem os interesses políticos de controle mundial travados entre o Leste e o Oeste.
Superposição de Jurisdição
Em Fevereiro de 2022, a Ucrânia iniciou perante a Corte Internacional de Justiça um procedimento judicial contra a Rússia, o qual ainda está em andamento. Por consequência, a jurisdição da Corte Internacional Penal sobre os mesmos fatos, ainda que sob a perspectiva penal com foco individual no presidente Putin, quando já em andamento o processo perante a Corte Internacional de Justiça, na qual se digladiam os Estados, gera, no mínimo, a suspeita de indevida superposição de jurisdição.
Liminar da Corte Internacional de Justiça e a Inexequibilidade Política
Em 16 de Março de 2022, a Corte Internacional de Justiça da ONU determinou uma liminar para a cessação da operação militar da Rússia no território ucraniano. Tal decisão está descumprida pela Rússia e é inexequível, justamente, pela dimensão política do problema da guerra, já que a ordem da Corte não pode ser executada sem resolução do Conselho de Segurança da ONU. Nesse contexto, a possibilidade de uma Estado “prender” Putin em cumprimento à determinação do Tribunal Internacional Penal é ideia simplesmente incendiária, comparável mesmo somente à autorização pelo Presidente Biden, a dois meses do fim de seu mandato, de utilização de mísseis americanos para contra-ataque ucraniano ao território russo.
Aparente Imunidade Internacional de Chefe de Estado (e ou de Governo)
Não existe uma norma específica, claramente objetiva, instituindo imunidade a Chefe de Estado ou de Governo em face da jurisdição dos Tribunais dos Estados estrangeiros. Todavia, a conclusão de que essa imunidade existe é de evidente razoabilidade à luz dos costumes, por força de textos internacionais, por exemplo, a Convenção das Nações Unidas sobre Missões Especiais de 1969.
Ainda, se a imunidade é deferida a diplomatas e oficiais consulares (Convenção de Viena), não faz sentido exigir-se texto internacional legal expresso para os Chefes de Estado, por força dos princípios consagrados de hermenêutica, “onde a razão é a mesma, o direito é o mesmo” e “quem pode o mais, pode o menos”.
O que assoma é que a evidente razoabilidade da imunidade de um Chefe de Estado ou de Governo dispensa o texto normativo internacional expresso.
A Corte Internacional de Justiça já afirmou (no caso concernente ao mandado de prisão de 11 de Abril de 2000 (entre a República Democrática do Congo e Bélgica) que:
“em direito internacional está firmemente estabelecido que […] certos detentores de alta posição oficial, tais como o chefe de Estado, chefe de governo e ministro de assuntos externos, gozam de imunidade da jurisdição de outros Estados, tanto civil quanto criminal”.
Ausência de Consentimento do Estado Russo à Jurisdição da Corte Penal
Não ser a Rússia parte do Estatuto de Roma torna inaplicável ao Estado russo as normas dos dispositivos daquele documento. Por outro lado, haver a Ucrânia aderido ao Estatuto só pode produzir efeitos para o próprio Estado ucraniano.
A experiência de direito internacional penal que existe até 1998, quando constituído o Tribunal Internacional Penal, é que o julgamento de autoridades e outras pessoas por crimes graves contra humanidade depende da concordância do próprio Estado onde os eventos aconteceram, ou de uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, órgão que tem autoridade internacional máxima sobre segurança mundial e que tem absoluto poder de criar um tribunal para julgar crimes, tal qual já ocorreu, por exemplo, no caso da antiga Iugoslávia e Ruanda.
Controle da União Europeia no financiamento da Corte Internacional Penal
Se, por um lado, a agressão russa à Ucrânia não se deu no vácuo, mas foi justificada pelo movimento da aproximação inimiga da Organização do Atlântico Norte de suas fronteiras, por outro, aquela agressão afeta o continente Europeu, justificando-se o envolvimento da União Europeia no conflito, alinhando-se, politicamente, à Ucrânia de forma incondicional.
Sucede que, como analisamos, existe um controle da União Europeia sobre a organização internacional que abriga o Tribunal Internacional Penal. Ora, estando a União Europeia envolvida indiretamente na guerra Rússia-Ucrânia, chamou muita atenção a rapidez e a pronta disposição do Tribunal em ordenar a prisão do Presidente Putin, produzindo com copiosa celeridade uma decisão liminar sem precedentes na história.
A rapidez com que tramitou o procedimento que resultou na ordem de prisão de Putin desperta, no mínimo, curiosidade quando comparada com a demorada tramitação do procedimento para prisão do Primeiro-Ministro Netanyahu, a qual apenas amadureceu alinhadamente à perda das eleições norte-americanas do partido democrático, com a reeleição de Trump.
Suspeita de Parcialidade do Tribunal Internacional Penal
Nessa senda, a ideia de que o Tribunal Penal Internacional toma decisões à mercê dos cenários políticos internacionais torna fundada a suspeita de sua imparcialidade quando se recorda que, ao tempo do primeiro mandato de Trump (2017-2021), o Tribunal Internacional Penal autorizou uma investigação contra os interesses dos Estados Unidos no Afeganistão; contudo, apenas perdeu Trump (inimigo do Tribunal) as eleições de 2020, a chegada de Biden fez com que o Tribunal Internacional Penal retirasse a investigação autorizada ao tempo de Trump. Agora, apenas ganhou Trump as eleições de 2024, o Tribunal Internacional Penal, após meses, emitiu ordem de prisão contra o Primeiro-Ministro Israelense, Netanyahu, aliado dos Estados Unidos.
Conclusão
A experiência jurídica tem demonstrado que, seja no plano doméstico dos Estados, seja no plano internacional das relações Estado-Estado, os organismos judiciais devem se manter ao largo dos conflitos políticos.
Desde 1899, sonha-se, na Europa, com a paz que pode ser trazida pela atividade jurisdicional. Contudo, de lá para cá, o mundo continua tão ou mais belicoso e violento do que vinha sendo antes da1ª Conferência de Paz de Haia, o que prova que a paz não é escrita em autos judiciais. A Corte Permanente de Arbitragem não foi capaz de impedir a 1ª Guerra Mundial em 1914; depois, em 1939, a Corte Permanente de Justiça Internacional da Liga das Nações não foi capaz de evitar a 2ª Guerra Mundial. Agora, a Corte Internacional de Justiça, com seu julgamento de 2004, não teve força jurídica e moral para impedir a guerra na Faixa de Gaza.
Nesse contexto, a expedição de um mandado de prisão contra o Presidente Putin pode ser entendida como uma medida política que, se tem algum efeito na guerra com a Ucrânia, não é de intimidação da Rússia, apoiada pela China, mas de acirramento do conflito, tornando o canal diplomático da mediação, que é um efetivo instrumento de pacificação, ainda mais difícil.
Tudo isso se dá também em evidente desprestígio da própria Justiça Internacional. E isto porque Putin jamais será preso e, em algum momento no tempo, a Corte terá de voltar atrás, como fez na sua investigação contra os Estados Unidos no Afeganistão.
A Corte Internacional de Justiça da ONU, por isso, acertadamente, tem posição conservadora de sua própria jurisdição; lamentavelmente, há vozes críticas que desejariam uma Corte Mundial mais “ativa”. Todavia, a mesma experiência história aqui já mencionada tem demostrado que de nada vale a melhor das decisões judiciais, quando não parte ela do princípio fundamental de sua respeitabilidade: A sua legitimidade.
Enfim, ao cabo da Segunda Guerra Mundial, os Aliados fizeram com que a nação alemã “sentisse” todo o peso da consequência pela legitimidade que outorgaram a um líder nazista. Em Setembro de 2022 posta em dúvida a legalidade da agressão russa à Ucrânia, a União Europeia tornou o visto para os viajantes russos à Comunidade mais demorado e caro (de 35 Euros para 80 Euros). Seria coerente a União Europeia fechar suas fronteiras à nação russa, fazendo com que os russos pudessem sentir as consequências de legitimarem a agressão de seu governante contra uma nação europeia.