Reflexões sobre o Dolo (I)

O Dolo à Luz do Direito Aeronáutico

  • Introdução
  • Importância da Responsabilidade Legal
  • Aspectos Filosóficos da Responsabilidade
  • Responsabilidade Legal
  • A Responsabilidade Aeronáutica
Introdução

Elementarmente, há duas categorias clássicas de responsabilidade civil, cuja concepção remonta o direito romano, a contratual e a extracontratual (também conhecida por aquiliana).

O dolo, como instituto jurídico de primaz importância, tem seus tentáculos em ambas as dimensões, tanto da responsabilidade contratual quanto da extracontratual.

As reflexões sobre o dolo, por isso, são aqui consideradas em ambos os planos da responsabilidade legal, e seus efeitos expostos à luz do Código de Aeronáutica.

Importância da Responsabilidade Legal

Não tem cabimento a concepção de que, dentro da disciplina jurídica, há assuntos mais relevantes que outros, posto que todos devem ser igualmente regulados, com a mesma eficiência técnica pelo legislador, que é quem produz a lei formal no nosso sistema normativo.

Contudo, há que se reconhecer que existem áreas da disciplina legal que são, por suas consequências práticas, econômicas, sociais e políticas, mais delicadas e, portanto, exigem da lei o mais acurado grau de tecnismo e senso de justiça.

A responsabilidade civil é um desses campos do direito em que a atuação legal precisa ter o máximo de perfeição jurídica.

Ninguém ignora, aliás, que a responsabilidade civil representa o conjunto normativo de incidência mais amiúde à realidade fática e, portanto, de maior interesse prático; ademais, as regras legais de responsabilidade civil entram em cena quando acontece alguma falha nas relações sociais e, por conseguinte, surgem lesões a serem reparadas (danos morais e materiais e, dentre estes, os lucros cessantes e danos emergentes). 

Na verdade, em nosso particular ponto de vista, não se compara à responsabilidade jurídica nenhum outro aspecto do direito em termos de exigência de contínuo e incansável trabalho de aperfeiçoamento por parte da doutrina e jurisprudência, em razão dos seus pressupostos fáticos muitas vezes turvos, de suas regras jurídicas não raro deficientes e, sobretudo, em razão de sua perspectiva metalegal no centro da qual nos deparamos com o ser humano, seu existencialismo e suas falhas, o que por si só representa um extenso horizonte de indagações filosóficas metafísicas.

Aspectos Filosóficos da Responsabilidade

Sob o aspecto filosófico ocidental, podemos dizer que seus contornos jurídicos são alicerçados na inspiração cristã de livre arbítrio de SANTO AGOSTINHO, fundada no princípio remoto da consciência do direito (apoiado no ideal liberal do Iluminismo de VOLTAIRE, MONTESQUIEU, ROUSSEAU e outros), e organizada pelos traços da voluntariedade, intencionalidade e reprovabilidade segundo o mecanicismo de NEWTON.

Ao especularmos sobre a responsabilidade no saguão filosófico do direito, deparamo-nos com o “temor” de KIERKEGAARD, com a “angústia” de HEIDEGGER e com a “náusea” de SARTRE, as quais representam valiosíssimas especulações do Existencialismo em torno da responsabilidade, em face do pujante tema consistente no homem, suas ações no mundo, as punições jurídicas como instrumento assegurador da convivência social. 

Por isso, centrado o Existencialismo na liberdade de escolha do ser humano, revela-se nessa vertente filosófica um amplo e contundente espectro de fértil pesquisa da conduta do homem, tornando-se, ao cabo, muito mais subsidiada para as altas indagações da responsabilidade do que da própria Ética com espeque em um pouco provável livre arbítrio.

Responsabilidade Legal

Em qualquer área do direito, constitui a responsabilidade civil um dos terrenos jurídicos mais incertos, movediços e fechados, estando a exigir, portanto, como já dito, ininterrupto esforço de seu aperfeiçoamento técnico.

Sob o aspecto jurídico, podemos atestar que na responsabilidade civil se polarizam, de um lado, a obrigação de indenizar e, do outro, o direito à indenização. A simplicidade da equação ensombra uma realidade intricada, porque entre um extremo e outro existem várias gradações e matizes que vão da responsabilidade contratual à responsabilidade extracontratual (aquiliana); da responsabilidade plena à responsabilidade limitada; da responsabilidade sem culpa à responsabilidade com culpa; da responsabilidade por ato próprio (direta) à responsabilidade por ato de terceiro (indireta); da responsabilidade do particular à responsabilidade do Poder Público etc.

Sob o aspecto humano, especialmente quanto à responsabilidade aeronáutica, pelas graves possibilidades de um mal sucedido transporte atmosférico, podemos garantir que, nos escaninhos cartorários onde dormem os processos, espremidas entre as várias teorias jurídicas, frias por sua própria natureza, indiferentes por seu dever de ofício, encontra-se a descoberto o que há de mais quente e comovente: O sentimento humano.

A Responsabilidade Aeronáutica

Considerada a responsabilidade penal de um lado, assenta-se do outro a responsabilidade civil e, como uma ramificação dessa, encontramos a responsabilidade aeronáutica, notadamente no terreno do acidente aéreo, como a mais saliente, por certo, pelo escopo de seus efeitos, pela extensão dos impactos de seus danos e, sobretudo, pela imprevisibilidade que a sua catástrofe pode trazer. Diante do acidente aéreo, as emoções espicaçam a flor da pele; aqui, o jurista se depara com a dimensão em que a elipse do direito tangencia o ser humano na sua perspectiva mais sensível, onde a lei pode lhe cortar a carne e lhe penetrar a alma, desnudando-o em suas vicissitudes, em suas carências, ansiedades e fraquezas.

Não lembro de ter visto um acidente aéreo como o da VoePass; enquanto o acidente da Latam de 2007 foi registrado quando já acontecida a tragédia, quando o Airbus já ardia em um dos lados da avenida Washington Luis, com o ATR 72 não… Ainda quando o infausto encenava seus passos iniciais, quando a aeronave bimotora caía no vácuo do parafuso chato, estoladamente girando em torno de si mesma, trazendo para a morte violenta seus pobres 62 ocupantes, todos os movimentos daquela dança da morte foram registrados até a queda atrás de alguns arvoredos da cidade de Vinhedo, sobre os quais, em segundos, assomou aquela terrível coluna negra da lareira acessa pelo querosene.

Talvez, a mais hialina tradução da dor de tanto desespero tenha vindo da mãe de uma das vítimas:

“Vi minha filha queimar ao vivo na televisão.”

Fátima Albuquerque (66) – mãe da passageira Arianne Risso (34)

De fato, embora a responsabilidade aeronáutica não se limite aos acidentes aéreos, nesse se encontra o seu auge.

“Isso não foi fatalidade. Foi culpa da “voemorte”, foi culpa da ganância humana. Aquilo não era um avião, era uma lata velha. Foi uma tragédia anunciada1.”

Eis aí, em poucas e desesperadas palavras, os contornos humanos reais da responsabilidade aeronáutica.

  1. O Tempo ↩︎
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