A Remota Origem das Arbitragens Internacionais
As arbitragens são tão antigas que sua ocorrência é narrada na solução de conflitos entre deuses mitológicos.
De fato, em sua festejada obra International Arbitration from Athens to Locarno1, Jackson H. Ralston nos informa que Pausânias (geógrafo e viajante grego, viveu entre 100 e 180 de nossa Era Cristã) conta que, surgindo um sério conflito entre o deus do mar, Poseidon (Netuno entre os romanos), e Hélios (deus do sol) acerca da propriedade do território de Corinto (uma das maiores e mais importantes cidades da antiguidade grega), o gigante monstruoso Briareus de cem braços (um dos três Hecatônquiros) arbitrou a disputa entre as divindades rixentas, tendo aquele centímano de cinquenta cabeças julgado que cabia a Poseidon o Istmo de Corinto e sua vizinhança, ao passo que caberia à propriedade de Hélios a parte alta da cidade. Salomônico o julgamento daquela rebelde entidade ao distribuir a propriedade mais baixa a Poseidon, já que estava mais perto de seu domínio marítimo, e a parte mais elevada ao poder do deus que ficava nas alturas…
Influência das Arbitragens Estados Unidos-Grã-Bretanha sobre a Conferência de Paz de 1899
Todavia, são as arbitragens mais modernas do fim do século XVIII e XIX, que aconteceram a meio dos conflitos entre a emergente potência mundial estadunidense e o império colonizador da Grã-Bretanha, que chamaram a atenção da Europa para a eficiência promissora das arbitragens para pacificar o Continente, naquele tempo, vergastado por guerras intermináveis entre nações de inspiração imperialista na Europa, em especial, as rivais França e Alemanha, cujas disputas estão no plano de fundo tanto da Primeira (1914-1918) quanto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Como explica o saudoso e respeitado professor David D. Caron, em memorável artigo de leitura obrigatória para qualquer interessado em Justiça Internacional, War and International Adjudication: Reflections on the 1899 Peace Conference2:
“Para entender os debates da Conferência de Paz de 1899, deve-se considerar o espírito do século XIX e a contemporânea preocupação com os crescentes horrores da guerra, a concomitante procura pela paz, e a crença de que a arbitragem internacional, se melhorada através do estabelecimento de uma corte permanente, oferecia a promessa do fim da guerra (…) Uma importante observação sobre as discussões do século XIX, que envolviam primariamente os Europeus, são consideradas globais apenas no sentido de que aquele século era um século europeu (…) Uma distintiva característica dos movimentos de paz do século XIX era a fé deles em arbitragem internacional, e particularmente a adjudicação diante de corte internacional permanente, como um promissor meio de alcançar a paz. (…) A arbitragem tinha emergido como um mecanismo nas relações internacionais no fim do século VIII, quando ela foi usada no Tratado de Jay de 1794 entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Essa forma de resolução de disputa internacional passar a gozar de um renascimento no século XIX, culminando, para muitos, em um evento particularmente importante, a Arbitragem Alabama de 1871-1872, cujo sucesso serviu para aprofundar ainda mais o entusiasmo geral e o apoio à adjudicação internacional”. Versão original em Inglês dessa passagem de David D. Caron
Expectativas frustradas de Paz
Lamentavelmente, por várias razões, a Primeira Convenção de Paz não foi capaz de criar uma verdadeira Corte Internacional de Justiça. A decisão de sua criação precisava ser unânime e capitaneava contra a ideia o Império Alemão.
Na verdade, o ideal de paz pela construção de um órgão judicial global é, por um lado, quimérico e, por outro, inapropriado. Quimérico porque a paz mundial não depende de Juízes, e sim de bons governantes que, por seu turno, são eleitos por bons povos. Inapropriado porque as cortes internacionais de natureza judicial sempre trarão o intransponível obstáculo da dúvida de sua independência e imparcialidade em seus julgamentos. A esse respeito, valiosa a advertência que nos fazem Philippe Sands e Ruth Mackenzie no elucidativo artigo International Courts and Tribunals and the Independence of the International Judge3:
“The emergence of an “international judiciary” is a relatively recent development. The first efforts to establish a standing international court occurred in the 1890s. They foundered for the simple reason that the states involved in the diplomatic negotiation of the Hague Peace Conference of 1899 could not agree on the method of appointing the judges. This disagreement centered on the proper balance between the desire of every participating state to have a judge on the court, on the one hand, with the need for a tribunal ofmanageable proportions, on the other hand. The first international court-the Central American Court of Justice was established in 1907 and was composed of a small enough number of states to avoid the obstacle on which the Hague discussions foundered. Due to its small size, each participating state was permitted a judge on the bench. While the original Central American Court of Justice was short lived, the intimate connection between the states party to the instrument establishing this international court and the provenance, number, and identity of the judges, with all that these factors imply for judicial independence, remains a live issue today.” Citação desse trecho de Philippe Sands e Ruth Mackenzie em Português.
A criação da Corte Permanente de Arbitragem, que se ironiza não ser nem corte, nem permanente, foi uma instituição alternativamente possível naquelas circunstâncias que, no fundo, eram adversas, haja vista a eclosão da Primeira Grande Guerra Mundial não muito tempo depois, por razões que já permeavam, infelizmente, disputas europeias nas relações internacionais ao tempo da Convenção de 1899.
É curioso se notar que, quando se olha para o passado, a doutrina se divide entre os que festejam a Primeira Conferência de Paz de 18994 e os tantos e tantos que demonstram frustração, desapontamento ou melancolia sobre a real capacidade humana de viver em paz:
“Até aqui tudo nos anima. Ao final da Primeira Conferência, houve muitas manifestações de desapontamento quanto ao seu resultado. Ela foi convocada pelo Tzar russo para limitar o como nunca crescente armamento mundial, e quase a primeira coisa feita pelo comitê apontado para discutir aquele assunto foi declarar, por um voto virtualmente unânime, que era impossível, ao menos naquele momento” (diminuir a corrida armamentista no mundo) – Hon. Andrew D. White. Versão original Inglês dessa citação de Andrew D. White
Aqui, uma caçoada do destino. Tanto estava a Russia interessada na paz, mas ela mesma era tomada pela violência interna. O grande incentivador das Primeira (1899) e Segunda Conferência de Paz (1907), Tsar Nicolas II, foi brutalmente assassinado com sua família em 17 de Julho de 1918, e ao tempo daquela que seria a Terceira Conferência de Paz de 1914, a “convenção de paz mundial” foi adiada pela eclosão do martírio global de 1914, substituída, digamos, pela “convenção de guerra mundial”.
O Desencanto e o Idealismo de um Velho Diplomata
Enfim, uma passagem digna de nota, da qual nos dá testemunho Paul S. Reinsch6:
É inevitável que qualquer compromisso deva ser julgado primariamente do ponto-de-vista do que foi originamente tentado pelos participantes e esperado pelos espectadores do que por um padrão estrito de suas conquistas. Na maioria das discussões desfavorávies que tem sido correntes durante e desde a conferência, o ponto de crítica é mais a opinião de que a conferência não cumpriu os propósitos prometidos do que a completa negação da inutilidade de seus resultados como tendo sido realmente alcançados. Bem na abertura da segunda conferência, M. Nelidoff, em seu discurso presidencial, revelou em um tom desiludido a impossibilidade de se realizarem certos ideais gerais que tinham sido consideradas a respeito daquelas grandes reuniões. Ele admitiu que “nós não precisamos nos desencorajar do sonho do ideal de paz universal e de fraternindade entre os povos, considerando que a condição essencial de todo progresso é a perseguição de um ideal na busca do qual nós nos esforçamos sem que nunca o alcancemos. No entanto, nós não devemos ser tão ambiciosos”. Ele concluiu dizendo que: “Vamos nos dedicar corajosamente ao trabalho, nosso caminho iluminado pelo brilho da estrela da paz universal, a qual não deveremos encontrar mas que deverá nos guiar”. Enquanto alguns entre os ouvintes de M. Nelidoff’s aprovaram a cautela de seu conversadorismo, outros sentiram que suas palavras resultavam de um excessivo matiz pessimista a partir da infeliz condição na qual a Rússia mesma se encontrava desde a guerra. Todavia, quando agora nós estudamos os esforços e as realizações do trabalho da conferência, nós podemos entender como a essência das palavras do presidente indicando as inevitáveis limitações and nos abrindo os olhos para os resultados não como grandes soluções, mas nos seus detalhes e arranjos específicos os quais à primeira vista podem parecer um tanto trivial ou de natureza puramente técnica. Texto original em Inglês dessa passagem de Paul S. Reinsch.
A figura do diplomata russo M. Nelidoff despertou minha atenção por suas palavras carregadas de indisfarçável desencanto e jovial idealismo me chamaram a atenção. O que teria sucedido ao Sr. Nelidoff?
- International Arbitration from Athens to Locarno. By Jackson H. Ralston. Stanford: Stanford University Press, 1929; London: Humphrey Milford; New York: The Baker & Taylor Co., 1929. pp. xvi, 417. ↩︎
- Caron, David D. “War and International Adjudication: Reflections on the 1899 Peace Conference.” The American Journal of International Law, vol. 94, no. 1, 2000, pp. 4–30. JSTOR, https://doi.org/10.2307/2555228. Accessed 30 July 2024. ↩︎
- Mackenzie, Ruth, & Sands, Philippe. (2003). International courts and tribunals and the independence of the international judge. Harvard International Law Journal, 44(1), 271-286. ↩︎
- “No dia 18 de Maio de 1899, a Primeira Conferência de Paz de Haia se reuniu na Casa da Floresta, cedida pela família royal holandesa” (“On May 18, 1899, the first Hague Peace Conference was convened in the House in the Woods provided by the Dutch royal family.” (Aldrich, George H., and Christine M. Chinkin). Recomendo a leitura de Aldrich, George H., and Christine M. Chinkin. “Introduction.” The American Journal of International Law, vol. 94, no. 1, 2000, pp. 1–3. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/2555227. Accessed 31 July 2024. ↩︎
- Reinsch, Paul S. “Failures and Successes at the Second Hague Conference.” The American Political Science Review, vol. 2, no. 2, 1908, pp. 204–20. JSTOR, https://doi.org/10.2307/1944774. Accessed 30 July 2024. ↩︎