Introdução ao conceito de Justiça Internacional

Justiça Internacional é uma ideia fugaz. Consultando o seu conceito, por exemplo, através do mecanismo da inteligência artificial, verificamos que a concepção de Justiça Internacional coincide com a percepção comum de “justificação”, quase um senso teológico de uma ação ou efeito pelo qual tribunais supranacionais organizados pelos Estados reparam os mais graves crimes contra a humanidade, genocídio, violações de direitos humanos, crimes de guerra e outros assemelhados, ou corrigem distorções nas relações entre os governos.

Assim, um questionamento sobre o que é Justiça Internacional organiza um conceito de senso comum que associa a Justiça Internacional à Corte Internacional de Justiça das Nações Unidas.

Conceito de Justiça Internacional pelo mecanismo da Inteligência Artificial

O conceito da “inteligência artificial” só se mostra inadequado à medida que apresenta apenas o aspecto da ideia mais saliente da Justiça Internacional, a ponta do iceberg, ignorando que, submerso, há um massivo bloco que ficou de fora daquele conceito, visto que também fazem parte da ideia de Justiça Internacional outros mecanismos intergovernamentais de resolução de disputas, por exemplo, sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio ou da Convenção do Mar, mecanismos “mistos” de solução de conflitos como se verifica sob o Banco Mundial; somam-se a essas instituições intergovernamentais permanentes, judiciais e quase-judiciais, os tribunais arbitrais institucionais e ad hoc. Ainda, para além das instituições resolutórias de conflitos internacionais de interesse governamental, há as instituições arbitrais comerciais, i.e., Tribunal da Câmara Internacional do Comércio, que se ocupam das resoluções de disputas internacionais entre indivíduos e empresas em suas relações internacionais. Porém, como anotamos em “What is International Justice: An Academic Approach”, mesmo academicamente, o conceito de Justiça Internacional é “sequestrado” pela Corte Internacional de Justiça e demais entidades adjudicatórias de natureza intergovernamental.

Introdução à Ideia Técnica de Justiça Internacional

Uma pesquisa em torno de “Justiça” retornará diversas definições, algumas até conflitantes, haja vista a grande densidade axiológica, histórica e etimológica do termo “Justiça”; de outro lado, a ideia de “internacional” deita efeitos diferentes no terrreno jurídico conforme a premissa que serve à ideia de inter-nações. Todavia, há um conceito jurídico científico de Justiça Internacional, o qual é invariável em seu conteúdo, embora possa ser variável em seus contornos (tríplice conceito de Justiça Internacional, como veremos adiante), de acordo com a perspectiva sob a qual nos referimos ao conceito de Justiça Internacional.

Um conceito bem rudimentar de Justiça Internacional pode ser

fazer internacionalmente o que é o certo

O conceito tem uma certa vagueza, como se lhe faltasse uma “peça” ou pressuposto. Trata-se da disputa. Todavia, a existência de uma disputa (real ou potencial) não é, exatamente, um pressuposto do conceito de Justiça Internacional, e sim o objeto de sua incidência, o que justifica não se incluir no conceito de Justiça Internacional o objeto de sua atuação. Seria ilógico. O Sol ilumina e aquece o sistema (de planetas e asteroides) à sua volta; daí, é certo se definir o que é o Sol a partir dos planetas e asteroides? O Sol é uma estrela que, por definição, é dotada de energia própria geradora de luz, calor etc. Destarte, inobstante o conceito de Justiça Internacional (ou mesmo de Justiça simplesmente) evoque a existência de disputas (reais ou potenciais), o conceito de disputa não deve ser incluído no conceito de Justiça.

“O problema de se incluir a ideia de disputa internacional no conceito de Justiça Internacional é a confusão daí resultante, porque embora a Justiça Internacional só possa ter por objeto uma disputa internacional, nem toda disputa internacional é julgada pela Justiça Internacional, podendo sê-lo pela Justiça Nacional dos Estados também.”

Exemplo eloquente daquela afirmativa é o recente e emblemático julgamento dos acusados de derrubar o Malaysia Airlines Flight (MH17), em 17 de Julho de 2014; os fatos ocorreram no território da Ucrânia, envolveu uma aeronave da Malasia, matando 298 pessoas de diversas nacionalidades, havendo acusados de nacionalidade russa, e o julgamento foi realizado pela Corte Distrital de Haia1 (nas Terras Baixas)!

Naquele conceito rudimentar, (a) o certo representa o que é o Direito, ao passo que (b) fazer constitui a atividade realizar o certo (ou aplicar o direito). Enfim, (c) internacionalidade é um atributo do sujeito indeterminado da oração, i.e., o julgador (juiz, arbitrador ou adjudicador).

Internacionalidade

Veja-se que internacional é o sujeito, é o julgador.

Embora a internacionalidade esteja presente, necessariamente, no conceito de disputa, a internacionalidade definidora da Justiça Internacional é a internacionalidade do sujeito julgador. Por conseguinte, internacional deve ser entendido não como “entre nações”, e sim como “supra nações”, que é o predicativo ou atributo de quem julga e que não é de nenhuma nação envolvida na disputa. Daí resulta que o internacionalismo (caracterizante definitivo da Justiça Internacional) é totalmente subjetivo (do sujeito), de quem exerce o julgamento.

Note-se que o julgador internacional é aquele constituído pela vontade direta dos Estados (i.e., as instituições adjudicatórias internacionais intergovernamentais como a Corte Internacional de Justiça ou o Tribunal Internacional do Mar), ou indireta dos Estados, por exemplo, os Tribunais Arbitrais Comerciais instuticionais (como o da Câmara Internacional do Comércio). Não se considera julgador internacional aquele julgador ao qual é atribuído pelos Estados, diretamente, o poder de adjudicar internacionalmente. Atribuir o poder de julgar internacionalmente não faz do juiz outorgado um juiz internacional. Ele deve ser constituído internacionalmente, por exemplo, através de uma resolução do Conselho de Segurança da Nações Unidas, como aconteceu com o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia. Mais uma vez, volta-se ao caso do MH17; a Corte de Haia não foi constituída pela vontade dos Estados envolvidos, mas sim a ela foi atribuída a autoridade de um julgamento internacional mediante convenção entre a Ucrânia e o Reino das Terras Baixas2.

O tríplice conceito de Justiça Internacional

Após ver um conceito técnico simples de Justiça Internacional, cabe esclarecer que embora seja o conteúdo científico invaríavel, a plástica daquele conceito varia a sabor do ponto-de-vista pelo qual nos referimos à Justiça Internacional.

O conceito de Justiça Internacional, similarmente ao conceito de muitos institutos jurídicos (i.e., direito privado, direito público etc.), é ambíguo pois tem diferentes sentidos, de modo que suas múltiplas definições dependem do contexto em que Justiça Internacional é empregada. Essa complexidade conceitual resulta do fato de que Justiça Internacional é um termo constituído de um substantivo abstrato (Justiça) predicado igualmente por um adjetivo abstrato (Internacional). Logo, é um termo sem nenhuma tangência fática ou referência física; por conseguinte, ampla liberdade de manipulação dogmática de Justiça Internacional. Na verdade, poucos são os conceitos jurídico unívocos, por exemplo, “matar alguém”, o qual pouca margem dá para “interpretações”.

De qualquer forma, quando nos referimos à Justiça Internacional, podemos fazê-lo sob o aspecto científico, pelo qual consideramos a Justiça Internacional como um ramo do Direito Internacional; sob o aspecto subjetivo, pelo qual nos referimos aos órgãos ou instituições que exercem a Justiça Internacional e, portanto, dela fazem parte e, por fim, podemos nos referir à Justiça Internacional concernente ao seu aspecto positivo, regulatório e constitutivo.

Conceito de Justiça Internacional sob o prisma da Ciência Jurídica

Cientificamente, podemos conceituar de forma técnica a Justiça Internacional sob três aspectos, ou a partir de 3 pontos-de-vista distintos. Da perspectiva da Ciência Jurídica, Justiça Internacional é um capítulo do Direito Internacional, no qual se organizam os princípios, normas e costumes de natureza forense, pré-processual, processual e procedimental internacional, em função dos quais se estudam o “judiciário internacional” que, embora não um sistema organizacional e hierárquico organizado, não deixa também de ser autopoiético na aplicação do direito às disputas. Assim, estão no âmbito do estudo da Justiça Internacional a jurisdição, a organização das cortes e tribunais, os juízes, arbitradores, adjudicadores e conciliadores; os princípios e normas dos processos e procedimentos internacionais; a ação e a defesa, a intervenção e a denunciação, as provas, o julgamento, os recursos, a execução dos julgados, as medidas cautelares e urgentes. Sob esse prisma, a Justiça Internacional é, comparando-se ao direito doméstico, um super Direito Instrumental porque abrange o Direito Processual, o Direito Forense e a Organização Judiciária em geral, em quaisquer dimensões, por exemplo, a Constitucional, complementar, também a ordinária e ainda a administrativa.

No plano da atividade prática, o profissional de Justiça Internacional é, por isso, um profissional de perspectiva clínica, a qual compreende a prevenção de conflitos, a solução negociada das disputas e as disputas sujeitas a qualquer tipo de adjudicaçãogovernamental, mista e comercial, judicial ou arbitral -, e relativa a qualquer direito substantivo (marítimo, humanitário, penal, comercial, bancário, financeiro, investimento etc.), estendo o seu domínio de atuação ao plano de pré-mérito da ação, da defesa, dos recursos e da execução das disputas. Posto que os fatos à luz de qualquer direito pode ser objeto de conflito e gerar uma disputa, considera-se holístico o domínio da Justiça Internacional.

Conceito Subjetivo de Justiça Internacional

Subjetivamente, considera-se a Justiça Internacional sob a perspectiva de seus órgãos e instituições, ou seja, as cortes e os tribunais internacionais. Assim, simplesmente, por Justiça Internacional se entendem os órgãos ou instituições internacionais, permanentes ou não, que são incumbidas de resolver as disputas pelos meios diplomáticos ou amigáveis (negociação, mediação, inquirição, conciliação) ou pelos meios coercitivos (adjudicatórios), seja pela arbitragem ou pelos meios judiciais propriamente ditos, já que existe diferença procedimental entre um julgamento de natureza arbitral e o judicial, embora ambos sejam adjudicatórios (no sentido de entregarem uma solução legal obrigatória aos disputantes).

Sob esse aspecto, consideramos as Cortes e os Tribunais Internacionais, seus órgãos, ato constitutivos, julgadores, organização interna, como se relacionam externamente etc.

Conceito Objetivo ou Positivo de Justiça Internacional

A Justiça Internacional, quando concebida pelo aspecto positivo, constitui-se do sistema normativo lógico, dogmaticamente organizado e instrumental do direito internacional substantivo, tendo por objeto a disputa e por finalidade prevenir os conflitos internacionais ou propiciar a solução deles pelos meios legalmente pacíficos, contribuindo, assim, para o ideal jurídico de paz e desenvolvimento social estabelecidos pela Carta das Nações Unidas de 1945.

O método comparativo

O raciocínio humano é aprisionado por dois dilemas lógicos: O da comparação das coisas entre si e, temporalmente, como elas teriam sido se fosse previamente conhecido como elas poderiam vir a ser (counterfactuals).

A comparação entre a Justiça Internacional (aqui, no seu aspecto subjetivo) e a Justiça de nosso país, como a conhecemos, é incabível. A atividade jurisdicional é exatamente a mesma, os órgãos são fisiologicamente semelhantes, mas estruturalmente incomporáveis. Não existe um sistema judiciário escalonado hierarquicamente capaz de dizer o direito em resposta às demandas internacionais.

A ideia de um judiciário internacional, ou mesmo de uma Justiça Internacional, evoca a imagem fictícia de um corpo judiciário supranacional orgânico, coeso, estruturado, com tentáculos nos vários ramos do Direito Internacional, julgando Governos e indivíduos sob um rito jurídico único e uma liturgia judicial singular que não existe.

“A Justiça Internacional não é um bíblico Golias, um gigante global, mas anões, uns um pouco maiores que outros, mas todos com as mesmas limitações e cada um deles com as suas próprias ideias sobre a Branca de Neve, embora tenham o mesmo trabalho na mina de diamantes e voltem para casa cantarolando a mesma música.”

Conclusão

Existe uma Justiça Internacional de fato? Podemos considerar os órgãos e instituições que resolvem as disputas internacionais nos níveis intergovernamental, misto e comercial como, realmente, um judiciário tal qual os Estados concebem nas suas estruturas soberanas internas? Sendo certo que a ideia de Justiça, tal qual a entendemos, em grande parte se prende à tripartição de Poderes do político gaulês Montesquieu, no plano internacional, quais seriam as forças Executiva e Legislativa que fariam parte daquele tríade sistema de equilíbrio de um Estado de Direito?

Realmente, é totalmente controversa a existência de uma Justiça Internacional sob o aspecto subjetivo da ideia; é mais aceita a ideia objetiva de que há normas, costumes e princípios de Direito Internacional que, no palco exterior à atuação das soberanias, desempenham um papel semelhante às regras de processo judicial doméstico dos Estados.

Nada obstante a controvérsia sobre a efetiva existência científica de uma Justiça Internacional, o fato irretorquível é que, caso existisse incontroversamente, seria unânime que não poderia ser a Justiça Internacional conceituada como o faz, por exemplo, a “Inteligência Artificial”.


  1. https://www.courtmh17.com/en/www.courtmh17.com/en/ ↩︎
  2. Tratado entre o Reino das Terras Baixas e Ucrânia sobre Cooperação Legal Internacional a respeito dos Crimes relacionados ao Abate do Voo da Malasia Linhas Aéreas MH17 em 17 de Julho de 2014. ↩︎