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- Introdução
- Internacionalidade
- Disputa Internacional e Jurisdição Internacional
- Disputa Internacional e Justiça Internacional
- Importância do Estudo de Disputa Internacional
- Disputa e Questão Legal
- Conceito de Disputa na Corte Permanente de Justiça Internacional
- Elementos do Conceito de Disputa Internacional
Introdução
Vista a Justiça Internacional sob o aspecto da Ciência do Direito, portanto, na ordem dos muitos ramos em que esse se divide, o estudo da internacionalidade é o primeiro passo na jornada do entendimento daquela, já que é a internacionalidade o matiz diferenciador entre uma relação de direito doméstico e de direito internacional.
Nessas primeiras linhas de entrada no conhecimento da Justiça Internacional como uma teoria geral do direito internacional judicial, que abrange os processos e procedimentos como instrumentos de realização do direito substantivo, a disputa e a jurisdição são outros dois conceitos interligados à internacionalidade.
Internacionalidade
Grosso modo, os institutos, categorias, normas, princípios, relações jurídicas etc. do Direito Doméstico dos Estados são replicados no Direito Internacional, já que, ao contrário do que se poderia supor, não existe uma solução de continuidade entre o Direito dos produzidos no âmbito territorial dos Estados com o Direito que aqueles mesmos Estados controem na esfera externa de suas relações, onde as soberanias são tratadas como individualidades que, sob a inspiração dos mesmos princípios de ordem e progresso que orientam as normas domésticas, devem se sujeitar à convivência pacífica de suas autoridades, cooperativa no plano econômico e solidária nos vínculos humanos.
A diferença, portanto, está na posição da soberania com relação às normas. No direito doméstico, também dito municipal, a soberania está no centro e sua autoridade tem efeito centrípeto, já que em torno de seu eixo constitucional devem girar os destinatários dos comandos normativos dali emanentes; contrariamente, no direito internacional, as soberanias se posicionam à margem do eixo das organizações internacionais, às quais é outorgada parte da autoridade dos Estados, ou seja, no movimento oposto do poder (centrífugo), transformando-se aquelas entidades um centro de poder supra-soberano, mas sob a contenção dos, ou de acordo com, limites do direito international.
“E nisso consiste, pois, a internacionalidade como uma característica ou qualidade que repousa sobre os Estados, as pessoas, as instituições e os seus vínculos, os interesses, os direitos e as obrigações, e as coisas, quase como se as ungindo, quando todos eles se relacionam fora da superfície da soberania dos respectivos Estados, no plano da supra-soberania que, por estar no ponto mais abstrato do universo do Direito, apresenta-se como uma realidade quase que espiritual, quando comparada àquela percepção mais concreta da lei nacional no berço da qual nascem os sujeitos de direito.”
Disputa Internacional e Jurisdição Internacional
Jurisdição tem conceito ambíguo no Direito Internacional; por vezes, é empregada como o poder emblemático da soberania dos Estados, quando esses se relacionam uns com os outros, de modo que cada um deve respeitar a independência e a livre determinação do outro, de acordo com o Article 1 (2) da Carta das Nações Unidas, que é complementado pelo respeito à igualdade de soberania, conforme o Artigo 2 (1), também da Carta de São Francisco. Outras vezes, jurisdição é tomada em sentido mais estrito, correspondendo à atividade típica de solução pacífica de disputa pela obrigatória adjudicação legal ou judicial. Nessa discussão, jurisdição é adotada no seu segundo conceito.
Disputa Internacional e Justiça Internacional
O entendimento do conceito de Justiça Internacional depende do conhecimento do conceito de disputa internacional; contudo, é necessário dizer que a ideia de disputa internacional, embora essencial para a compreensão de Justiça Internacional, não integra o conceito de Justiça Internacional, visto que aquela é o objeto de incidência dessa.
“Em seu mais genérico sentido, tecnicamente, disputa internacional é o objeto da Justiça Internacional, já que essa se organiza e se desenvolve em função da prevenção e solução pacífica dos conflitos internacionais”
Importância do Estudo de Disputa Internacional
O estudo da teoria da disputa internacional demonstra que não existe uma segmentação entre direito doméstico (municipal ou nacional dos Estados) e o direito internacional (supranacional ou ultrassoberano), nem valida a bipartição de direito internacional em público e privado, nada obstante se reconheça que a influência de Ulpiano influencie a divisão do direito internacional em público e privado irremediavelmente, enquanto a separação entre o direito interno dos Estados e o internacional seja sempre bem justificada.
Em termos processuais, a relevância da disputa se prende ao fato de que, sem disputa, não há jurisdição, justamente porque a disputa é o objeto da jurisdição. A Corte Internacional de Justiça, nesse sentido, estabeleceu que, à luz dos artigos 38 e 40 de seu Estatuto, que:
“A existência de uma disputa é a condição primária para a Corte exercer sua função judicial”1
Disputa e Questão Legal
A propósito, calha esclarecer no contexto do estudo de disputa, que as cortes internacionais são dotadas de poderes jurisdicionais, pelos quais julgam as disputas, mas também costumam ter elas atribuições consultivas (advisory opinions), paralelamente à “contentious jurisdiction” (jurisdição contenciosa). Como explica Shabtai Rosenne2, enquanto o Estatuto da Corte Internacional de Justiça requer para que haja jurisdição que exista uma dispusta, artigo 38 (1), para que se verifique a atribuição consultiva o Estatuto condiciona à existência de uma “questão legal”, artigo 65.
Assim, fica claro que o objeto da jurisdição é a disputa, ao passo que o objeto da consulta é uma questão legal, ou seja, não envolve (diretamente) um conflito de interesses, nada obstante a questão legal possa ter, no plano de fundo, uma disputa corrente. Foi o caso da consulta referente à Legal Consequences of the Construction of a Wall in the Occupied Palestinian Territory.
É assaz interessante observar que a existência de uma disputa, no contesto de uma atribuição consultiva da Corte, tem efeito inverso, pois tenderia a ser considerada como um fator impeditivo da atribuição consultiva, já que, então, o certo seria uma jurisdição contenciosa com o devido consentimento da parte interessada no julgamento, e não uma consulta. Essa interpretação foi afastada pela Corte.
Conceito de Disputa na Corte Permanente de Justiça Internacional
A concepção de disputa, dada (em 1924) pela Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI), no caso Mavrommatis, é simples e formulado para fins práticos, aplicável à interpretação, por exemplo, de justiciabilidade:
“A dispute is a disagreement on a point of law or fact, a conflict of legal views or of interests between two persons”
Posteriormente, a Corte Internacional de Justiça, sucessora da CPJI, cinzelou aquele conceito por substituir o termo genérico “pessoas” pelo termo mais apropriado (partes), no East Timor case (1995).
Em International Dispute Settlement, festejada obra do incomparável e saudoso J. G. Merrills,3 já na sétima (póstuma) edição, encontramos um conceito mais elaborado:
“A dispute may be defined as a specific disagreement concerning a matter of fact, law or policy in which a claim or assertion of one party is met with refusal, counter-claim or denial by another. In the broadest sense, an international dispute can be said to exist whenever such a disagreement involves governments, institutions, juristic persons (corporations) or private individuals in different parts of the world. However, the disputes with which the present work is primarily concerned are those in which the parties are two or more of the nearly 200 or so sovereign states into which the world is currently divided.” Essa citação de J.G. Merrills em Português
Esses dois conceitos de disputa são valiosos e neles se identificam os citados “elementos conceituais” da disputa internacional: “Party” (elemento subjetivo); “claim” ou “assertion” e “counter-claim” ou “denial” (elemento objetivo); “specific disagreement concerning a matter of fact, law or policy”, “different parts of the world” (elemento formal).
Elementos do Conceito de Disputa Internacional
Os elementos da disputa internacional são: (a) elementos subjetivos (partes na disputa), (b) elemento objetivo (bem material ou imaterial) e o (c) elemento formal (vínculo abstrato que conecta os disputantes, seus interesses em conflito, o direito conectador, a extraterritorialidade e soberanias envolvidas). A exposição sumária desse importante aspecto da disputa deixaremos para um próximo post.
- Nuclear Tests Cases (Nuclear Tests (Australia v. France) (icj-cij.org) ↩︎
- Rosenne, S. (2006). “15 Advisory Jurisdiction”. In The Law and Practice of the International Court, 1920-2005 (Fourth Edition). Leiden, The Netherlands: Brill | Nijhoff. https://doi.org/10.1163/ej.9789004139589.i-1892.111 ↩︎
- Merrills, John, and Eric De Brabandere. Merrills’ International Dispute Settlement. 7th ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. Print. ↩︎